Colunas 24 outubro, 2022
por Raphael Guimarães

Na Graphic MSP pode!: Sidney Gusman e os 10 anos do selo

Sidney Gusman falou com o Portal Perifacon sobre os 10 anos do selo que mudou o mercado nacional de quadrinhos *Matéria escrita por Raphael Guimarães. Entrevista conduzida por Raphael Guimarães e Rodrigo Bastos. Em outubro de 2022, comemoramos os dez anos do lançamento de Astronauta – Magnetar, a primeira publicação do projeto Graphic MSP (que, […]

 

Sidney Gusman falou com o Portal Perifacon sobre os 10 anos do selo que mudou o mercado nacional de quadrinhos

*Matéria escrita por Raphael Guimarães. Entrevista conduzida por Raphael Guimarães e Rodrigo Bastos.

Em outubro de 2022, comemoramos os dez anos do lançamento de Astronauta – Magnetar, a primeira publicação do projeto Graphic MSP (que, consequentemente, também completa uma década de existência esse mês).

O selo surgiu com a intenção de transformar os clássicos personagens da Turma da Mônica em graphic novels com estilos diversificados que pudessem ser lidos por todos os públicos. Embora o título do projeto carregue a sigla MSP (de Maurício de Sousa Produções), há um outro grande nome da história do quadrinho nacional que atua como o responsável por este projeto tão ambicioso.

Sidney Gusman tem 56 anos de idade, é jornalista, editor de quadrinhos, editor-chefe do Universo HQ, apresentador do podcast Confins do Universo e, desde 2012, idealizador e editor do projeto Graphic MSP.

No mesmo nível em que Maurício é o pai da turminha, por ser o criador de todo o universo que é adaptado no selo, Sidney é o pai de cada um dos quadrinhos que compõem as Graphics MSP.

É ele o responsável por escolher quais personagens protagonizarão as histórias, selecionar os artistas que trabalharão em cada álbum, dar pitacos durante a idealização do roteiro, da arte, do projeto gráfico, comandar toda a editoração dos títulos e, claro, por inventar o projeto que surgiu com a intenção de resgatar os leitores que abandonaram os quadrinhos depois que cresceram.

Em entrevista ao Portal PerifaCon, Sidney constata que a maioria dos leitores de quadrinhos do Brasil só lê Turma da Mônica na infância, larga o hábito quando cresce e só retorna a ler na vida adulta, para os filhos, novamente com os gibizinhos da Mônica. O objetivo das graphics MSP era mudar esse cenário.

O que eu mais escuto é ‘você me fez voltar a ler quadrinhos’, e não só do Mauricio de Sousa, porque quem voltou a ler continuou também lendo outros autores. Hoje, em qualquer evento de quadrinhos, quem está com uma Graphic MSP debaixo do braço também está com uma HQ de um artista independente porque ela pensa ‘é daqui que o Sidão está tirando esses caras’. E assim a coisa foi se construindo.

O editor nos conta, inclusive, que parte da estratégia para atrair o público adulto era estrear o título com um personagem que em nada fosse fofinho ou com algum apelo infantil. Por isso a escolha pelo Astronauta. Criado por Maurício em outubro de 1963 (coincidentemente também aniversariando esse mês, olha só), o Astronauta surgiu como um aventureiro espacial que visitava planetas estranhos e lidava com a solidão de estar distante de casa. Segundo Gusman, estrear o selo com esse personagem era uma tentativa de chegar “chutando a porta, em uma história que o personagem enlouquece,fica abandonado no espaço cinco meses e quase morre”

Em Magnetar, o roteirista e ilustrador Danilo Beyruth e a colorista Cris Peter transformaram a proposta clássica do personagem em um épico de ficção científica com um intimismo pessoal e uma paranoia sufocante que funcionou muito bem. 

Em 2013 a HQ ganhou o Prêmio Ângelo Agostini de “melhor lançamento” e o Troféu HQ Mix de “melhor edição especial nacional” mostrando a todo o mercado que as Graphics MSP tinham chegado. E chegado para ficar.

Reprodução: Maurício de Sousa Produções

A primeira leva de publicações das graphic novels da MSP incluía quatro títulos: Magnetar (de Beyruth e Peter), Turma da Mônica – Laços (dos irmãos Vitor Cafaggi e Lu Cafaggi), Chico Bento – Pavor Espaciar (de Gustavo Duarte) e Piteco – Ingá (de Shiko). Respectivamente, um quadrinho de ficção científica hard, um de aventura fofa, um de humor e um de aventura épica. O passeio entre os gêneros e autores também fazia parte do plano de Sidney desde o começo, o que causou (intencionalmente) uma mudança no cenário brasileiro de quadrinhos.

Desde o início eu queria que o selo fosse um limpador de parabrisa, que fosse de uma ponta a outra. Passando por todos os gêneros, oferecendo boas histórias com personagens do Mauricio com novas roupagens e apresentando novos artistas para o público. Hoje o Caffagi, o Beyruth, todos os artistas que fizeram Graphics e continuam produzindo, fazem filas enormes nos eventos e se beneficiam da vitrine que o projeto lhes deu.

Para quem conversa com Sidney Gusman, há duas características que ficam claras que ele possui. Uma é a gratidão a Maurício de Sousa. A gratidão por ter lhe emprestado seus personagens para um projeto que hoje é bem sucedido mas na época era um tiro no escuro. 

Ele já tinha os gibis tradicionais da Turma e a Turma da Mônica Jovem. Eu surgi com um projeto que mirava em outro público, com outra arte e trazendo artistas de fora da casa. Ele poderia simplesmente ter dito não”, conta Gusman.

A outra característica é a teimosia. O editor bateu o pé para que várias coisas que ele julgava essenciais acontecessem. Bateu o pé para que os álbuns fossem publicados em capa cartão e capa dura (“hoje o mercado só quer capa dura porque vende mais mas eu preciso da capa cartão que vai ser vendida em banca de jornal”), bateu o pé para que os títulos fossem reimpressos pela Panini frequentemente (“eu não vou deixar alguém pagar 600 reais em uma Graphic MSP no Mercado Livre, não vou”) e bateu o pé, principalmente, para que os autores pudessem ter liberdade para explorar temas sensíveis.

Sidney nos contou que a frase “na graphic MSP pode” é uma das que ele e Maurício mais dizem para os autores que tiram dúvidas sobre o quão maduras algumas das histórias podem ser dentro do selo.

O Astronauta pode aparecer nu? Na Graphic MSP pode. A Mônica pode lidar com o divórcio de seus pais? Na Graphic MSP pode. Podemos falar de assédio sexual no local de trabalho? Na Graphic MSP pode. Podemos falar de racismo? Na Graphic MSP pode.

O selo surgiu não apenas para atingir o público mais velho mas também para abordar temas maduros e socialmente relevantes que foram evitados por décadas pela MSP. Foi o caso de Jeremias – Pele (de Rafael Calça e Jefferson Costa), que foi publicado em 2018 como a estreia de Jeremias (o primeiro personagem negro da Turma da Mônica) como protagonista e estrelando uma capa, mesmo existindo desde 1960.

Gusman falou ao Portal PerifaCon sobre como trabalhar o lado de Calça e Costa causou mudanças significativas na própria estrutura da Maurício de Sousa Produções. Pele ganhou o Troféu HQ Mix de “melhor edição especial” e “melhor publicação juvenil”, trouxe o prêmio Angelo Agostini de Melhor Roteitista para Rafael Calça e conquistou também o primeiro Prêmio Jabuti da história da Maurício de Sousa Produções. Trazer representatividade nas Graphics MSP com o Jeremias (e com uma recepção tão positiva) abriu caminho para que uma nova personagem negra surgisse nos gibis de linha da Turma da Mônica, trazendo assim Milena Sustenido.

Reprodução: Instagram: @mauricioaraujosousa

“A Milena é um sucesso de merchandising. Por que será? A Turma da Mônica não é na Suécia! Temos pessoas pretas no Brasil que consomem quadrinhos e produtos relacionados a esses personagens. Quem diria?” comenta o editor.

Sidney conta que ficou emocionado quando participou da segunda edição da PerifaCon, a primeira convenção nerd das favelas, ao ver uma cosplay de Milena. Para Sidney, não tem preço poder dar uma contribuição para que as revistas de linha mudassem e hoje pudéssemos ter Milena como a quinta personagem da turma. 

Além das mudanças “pra fora”, como ele mesmo diz, é perceptível também a inovação em setores internos da MSP.

A Milena estreou no cinema um ano depois dos quadrinhos e agora ela vai protagonizar uma série com o Franjinha na HBO Max. Essa retroalimentação mostra que a empresa está atenta e reconhecendo que tem coisas pra mudar. E não é só da porta para fora. Da porta para dentro, a empresa tem mais preocupação em contratar pessoas negras, pessoas LGBTQIA+, pessoas com deficiência. Tem mais diversidade. Fico muito feliz de ver que isso tá acontecendo. Quem disse que é só quadrinho?”

Segundo Sidney, faz parte da responsabilidade do selo e da empresa admitir que as inclusões de diversidade e representatividade em seus projetos chegaram atrasadas (como diz o texto de Emicida na quarta-capa de Pele) mas felizmente chegaram. 

E se o impacto nos quadrinhos é visível, como ele não seria também na vida e nas percepções de Sidney?

Aprendi muito fazendo ‘Pele’. Eu sou branco. Cresci vendo o Renato Aragão zoar o Mussum. Cansei de rir de piada racista. E não era engraçado, eu que era babaca. E que bom que as pessoas mudam.

Reprodução: Mauricio de Sousa Produções

O editor ressalta que em eventos de lançamento e sessões de autógrafos de Pele e Alma (a sequência da HQ, lançada em 2020), quando abria-se a possiblidade do público fazer perguntas, ninguém perguntava nada. Só se contavam histórias. E foi em cima de histórias dos autores Calça e Costa que a HQ foi construída ao lado de Sidão.

Há um momento em ‘Pele’ em que o pai do Jeremias leva uma batida policial. Eu perguntei ‘Jef, isso aqui não tá muito pesado,não?’ e ele riu e disse ‘Sidão, isso aí é a minha vida. E eu ainda amenizei, porque na vida real o cara para com o revólver na minha cara.’ Aí eu decidi que isso tinha que ficar no quadrinho. É a vida dos caras. E ficou. Eu lia o quadrinho enquanto ele era escrito e pensava ‘isso não é justo’. Aprendi que pessoas negras precisam sair de casa com a carteira de trabalho. Choro muito quando leio as duas graphics do Jeremias e sei, infelizmente, que elas vão continuar atuais por muito tempo. Espero que um dia não sejam mais.

Algo que Sidney menciona a todo momento é a relação de amizade que acaba desenvolvendo com os autores selecionados para trabalhar com as graphics MSP. Claro que pode ser que seja sorte mas o processo de seleção é minucioso e feito pelo editor seguindo alguns critérios:

  • O autor precisa ser brasileiro. Autores gringos na Graphic MSP não vai acontecer. O projeto existe para privilegiar o quadrinho nacional.
  • O processo é um pouco parecido com o que rola nas editoras de super-heróis como Marvel e DC Comics em que a editora não aceita propostas. É Sidney quem vai de encontro aos artistas e não o contrário (com a única exceção sendo o álbum Louco – Fuga, de Rogério Coelho).
  • O autor precisa ter um vínculo com os personagens, com a Turma da Mônica, precisa ter uma conexão emocional com o trabalho. Caso contrário, não faz sentido.

E se o vínculo com a Turminha é algo que precisa vir de antes, algo que com certeza surge no processo é o vínculo com o editor.

O selo Graphic MSP modificou o mercado nacional de quadrinhos, colocando gibis jovens adultos na banca de jornal e resgatando leitores que não liam HQs há décadas. Modificou a vida dos artistas que trabalharam no selo, dando-os vitrine e tornando seus nomes conhecidos por pessoas que talvez nunca se interessariam por quadrinhos independentes. E modificou, sem sombra de dúvidas, as competências profissionais e de caráter do editor e jornalista Sidney Gusman.

Na Bienal do Livro de SP, eu e Vitor Caffagi [co-autor da trilogia Laços, Lições e Lembranças e autor de Franjinha – Contato] nos abraçamos e ele disse ‘Você sabe que pra nós você não é só um editor, né?’ e eu disse ‘E para mim, vocês não são só autores’.

Em entrevista ao Portal PerifaCon, Sidney Gusman reafirma que quer que se danem aqueles que acham que em relações profissionais não podem surgir vínculos de amizade e de afeto entre as pessoas. Pois bem, na Graphic MSP pode.