por Raphael Guimarães
‘Marte Um’ de Gabriel Martins: Como contar tão bem uma história comum
Em entrevista ao Portal PerifaCon, o diretor falou sobre família, oportunidade e representação no cinema nacional Em 2022, Marte Um definitivamente é, até então, o filme nacional de maior destaque. Viabilizado por políticas públicas e feito de forma independente pela produtora Filmes de Plástico, o longa foi escolhido por uma comissão indicada pela Academia Brasileira […]
Em entrevista ao Portal PerifaCon, o diretor falou sobre família, oportunidade e representação no cinema nacional
Em 2022, Marte Um definitivamente é, até então, o filme nacional de maior destaque. Viabilizado por políticas públicas e feito de forma independente pela produtora Filmes de Plástico, o longa foi escolhido por uma comissão indicada pela Academia Brasileira de Cinema para representar o Brasil no Oscar e tentar uma indicação na categoria de Melhor Filme Internacional.
Em nota divulgada a imprensa, Bárbara Cariry, presidente da comissão responsável pela escolha, revelou que a seleção de Marte Um se deve pois o filme “trata de afeto e de esperança, da possibilidade de seguir sonhando em meio a tantas dificuldades econômicas e políticas. Marte Um sintetiza bem o cinema brasileiro, com qualidade narrativa e técnica, que vem sendo realizado hoje, representando a diversidade do país“.
O efeito geral que o longa causa tanto no público quanto na crítica é o de uma identificação gigantesca e um agrupamento de significados que resumem bem a nossa identidade nacional. Isso para o Oscar pode não ter tanto apelo (visto que a maioria dos membros votantes não é brasileira), mas para Gabriel Martins, diretor de Marte Um, é simbólico que um filme brasileiro e independente participe da premiação de cinema mais tradicional e relevante da história. Em entrevista ao Portal PerifaCon, o cineasta comentou:
Não sinto que a gente precise ficar depositando lá qualquer esperança da nossa cultura dar certo, acho que temos que prestigiar nossos filmes aqui independente disso. Mas obviamente há um impacto dessa premiação no mundo, há uma força simbólica muito grande que coloca luz num cinema que precisa ser mais visto e entendido. Se esse é um caminho pra gente fazer mais barulho do que a gente já faz, a gente tem que ir a fundo. É menos uma questão de uma conquista pessoal minha ou da minha produtora e mais um espectro coletivo. Esse filme, da forma que ele foi feito, chegar na dita maior premiação de cinema do mundo.
Ao chegar tão longe para um filme feito de maneira independente e que (ao ultrapassar o número de sessenta mil espectadores) foi assistido por mais pessoas do que filmes produzidos dessa forma costumam ser, Marte Um acaba por dialogar com a sua própria temática de realização de sonhos onde o personagem Deivinho (interpretado por Cícero Lucas) sonha em se tornar um astrofísico, o que pode ser uma alusão ao sonho (realizado) que Gabriel tinha na infância de se tornar cineasta. Mas o diretor alerta: Marte Um não é um filme motivacional sobre alcançar objetivos e realizar sonhos, e sim sobre a permissão de sonharmos e cultivar essas aspirações, sem tê-las tiradas de nós.
“O desejo do Marte Um é forte como um simbólico de vários sonhos mas essa construção vai além da necessidade de se concretizar, não precisa ser palpável para ser satisfatório. Obviamente torço para o Deivinho conseguir ir para Marte mas o filme é muito maior que isso, maior que o sonho prático desse menino. É um filme sobre o direito dele de sonhar e, pra mim, não interessa muito se ele vai de fato concluir isso, mas a semente tá ali. A gente também não pode ter a ilusão de dizer para todas as pessoas da sociedade que todos vão realizar seu sonho, não é bem assim. Eu realizei o meu, mas talvez eu seja uma exceção, eu não sou uma regra.”
As comparações traçadas entre o diretor e Deivinho não param nos sonhos distantes de suas respectivas realidades. Segundo Gabriel, as interações entre o menino e o pai Wellington (Carlos Francisco) baseiam-se muito em sua relação com seu pai, especialmente nas falhas de comunicação e nas dificuldades em expressar seus sentimentos. Para o diretor, isso sintetiza uma geração de homens que não pôde se expressar livremente sobre as coisas que sentia.
No filme, a dinâmica familiar com sua leveza, profundidade e realismo depende, obviamente, da competência de Gabriel enquanto um coordenador de elenco mas também dos próprios atores. Segundo o cineasta, não houve nenhum trabalho árduo para que as relações familiares parecessem convincentes pois quando o filme começou a ser rodado, eles já eram uma família.
Os pais [Carlos Francisco e Rejane Faria] são atores muito experientes e os filhos [Cícero Lucas e Camilla Damião] são inteligentes e perspicazes demais. Não precisei construir uma dinâmica artificial porque eles já eram pessoas que se interessavam umas pelas outras, não houve nenhuma desavença ou desconexão, eles estavam completamente conectados. Meu papel foi de direcionar isso para onde eu queria levar a história, o que eu julgo como um trabalho muito divertido porque a potência já estava ali nos atores
Ao se basear em sua própria família (e em toda e qualquer família brasileira real), Gabriel Martins consegue que Marte Um seja ao mesmo tempo um filme diferente do que os outros filmes brasileiros de notoriedade são e com uma abordagem que leva o espectador a um lugar comum, sentindo-se confortável enquanto assiste e traçando paralelos com sua própria vida. Quando questionado sobre os desafios de tecer uma narrativa tão verossímil e com tanta potência para gerar identificação, Gabriel explica que não existe segredo além de uma postura sincera de observação.
Precisamos entender que o cinema pode ser mais justo e sincero com a vida, principalmente o cinema brasileiro que muitas vezes representou personagens negros com limitações. Se a gente para pra pensar, a família do Marte Um é uma família super comum, né? Uma família sem nada de extraordinário com a qual a gente se identifica em vários planos. Só que curiosamente esse tipo de família não foi dado holofotes o suficiente na história. Quando trago essa narrativa pra esse filme, óbvio que tem muitas coisas complexas acontecendo com cada personagem, mas há um apego muito simples. O simples é essencial, e isso faz com que essa família tenha uma força, uma potência, diante do espectador.
Enquanto cineasta, Gabriel Martins defende a pluralidade de gêneros cinematográficos sendo produzidos no Brasil. Segundo o diretor, boa parte do público e dos idealizadores de cinema no país se ancoram em ideias prontas do que os filmes nacionais devem ser, muito por conta de filmes que fizeram muito sucesso (como Cidade de Deus e Tropa de Elite) e acabam por definir as futuras levas de filmes se baseando nisso. O diretor entende que esse entendimento de que só certos gêneros funcionam no Brasil está completamente errado.
O que a gente precisa fazer é filmes mais diferentes chegarem cada vez mais no grande público. O Marte Um tá indo bem nas bilheterias, tem mais de 50 mil, mas ainda é uma performance muito tímida perto do tamanho do Brasil. Cada vez a gente vai rompendo mais essas barreiras”
O filme se preocupa a todo momento em retratar o Brasil de uma maneira realista e relacionável mesmo que a trama principal siga uma família fictícia. Gabriel queria situar o filme em uma cultura pop brasileira do mundo real, criando uma intersecção entre fato e ficção.
Parte disso é visível pelo uso de figuras reais com grande popularidade no Brasil como o influenciador e multiartista Tokinho e o ex-jogador de futebol Juan Pablo Sorín que fazem uma ponta no filme. Outro elemento essencialmente brasileiro presente no filme é a tragicomédia que, de acordo com Gabriel, compõe a cultura nacional.
Faz parte da minha personalidade e faz parte da cultura brasileira, que é meio tragicômica. Até em períodos eleitorais, por exemplo, a gente tem vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. É muito trágico e ao mesmo tempo temos muitos elementos de um humor quase involuntário. Quando faço esse filme que quer ser muito brasileiro, não tem como fugir disso.
O papo que Gabriel Martins bateu com o Portal PerifaCon aconteceu na semana após o primeiro turno das eleições de 2022, o que justifica o uso do período eleitoral como exemplo na aspa anterior. Durante esse período, uma fala de Gabriel viralizou nas redes sociais. No vídeo, o diretor menciona que a existência de Marte Um só foi possível devido a um edital de ações afirmativas dos governos Lula e Dilma.
Perguntamos ao cineasta quais seriam as suas expectativas para o cenário do cinema nacional caso houvesse um terceiro mandato de Lula (que hoje sabemos que acontecerá em 2023). O cineasta acredita que não necessariamente uma nova cena surgirá mas sim uma retomada de algo que foi interrompido após o golpe que o governo Dilma sofreu em 2016, impedindo que muitos profissionais do audiovisual lançassem o seu primeiro longa. O diretor ainda comenta a que o governo Lula enfrentará desafios complexos se quiser realizar uma retomada no cinema nacional pelo fato de boa parte do congresso não ser completamente favorável a seus planos.
Retomando o Ministério da Cultura e outras questões eu já acho que podemos caminhar melhor. Isso diante do nosso cenário atual já é uma visão otimista. Mas esse governo também precisa plantar sementes pra que exista continuidade e não tenha sempre uma reciclagem completa do cinema brasileiro a cada quatro anos. É uma situação delicada porque os projetos são longos e não podemos ficar refém das trocas de governo.
A contextualização política é parte do pano de fundo de Marte Um assim como as necessidades de dar a ele uma cara brasileira e identificável. O filme se passa entre 2018 e 2019, logo após Jair Bolsonaro ser eleito presidente do Brasil.
Originalmente, quando o filme foi idealizado, a ideia de Gabriel era situar o longa após a derrota da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2014 (o fatídico 7×1 contra a Alemanha), subvertendo a energia de perda em algo potente para a narrativa do longa. O diretor nos explicou suas intenções ao trocar isso para um período pós-eleitoral.
O meu sentimento depois do 7×1 foi de que aquela energia era muito forte mas também de pensar um “é isso, não se ganha sempre”. Talvez a derrota tenha algo importante pra nos ensinar. Com isso, me pareceu inevitável situar o filme culturalmente no período pós-vitória do governo Bolsonaro já que sempre quis que o filme se situasse no momento em que ele foi filmado, e acabou calhando. Tudo isso se encaixa e isso potencializa o roteiro pra lugares que eu sequer tinha pensado antes.
Desde o dia 15 de novembro, Marte Um está disponível para ser alugado nas principais plataformas on-demand de streaming, por uma iniciativa do Canal Brasil. Em 21 de dezembro, a Academia divulgará a lista prévia de selecionados para o Oscar de 2023, onde esperamos ver Marte Um presente como representante do Brasil na premiação. O anúncio dos indicados ocorrerá em 24 de janeiro de 2023 e a cerimônia está marcada para 12 de março de 2023.