Colunas 17 novembro, 2023
por Redação PerifaCon

“Ó paí, Ó 2”: Uma excelente imersão no brasil dos invisíveis

Uma narrativa Afrofuturista sobre a força da união: “Daqui a gente não sai, daqui ninguém tira a gente!”

 

Texto por: Hyader

A sequência tão esperada de “Ó Paí, Ó” mergulha nas raízes culturais do país de maneira crua, explorando as intricadas teias sociais e os contrastes que compõem a sociedade brasileira, atualizando seus temas e mensagens para os dias de hoje com perfeição, exaltando uma militância destemida através da poética do gênero ficção.

Sob a direção de Viviane Ferreira, a sequência não apenas atualiza seus temas e mensagens para os dias atuais com perfeição, mas também tece uma narrativa que se desenrola 15 anos após os eventos do filme original, apresentando uma reflexão profunda e emotiva das complexidades culturais e das relações humanas promovendo um pulsante amadurecimento.

Essa continuação não se limita a ser uma mera extensão da história anterior, ao contrário, funciona como uma sequência direta, oferecendo uma evolução natural dos personagens e das tramas anteriormente apresentadas. A trama se desenrola no Pelourinho, coração histórico de Salvador, durante a Festa de Iemanjá, uma peregrinação na qual milhares de devotos e seguidores expressam suas homenagens à mãe de quase todos os orixás, através da oferta de presentes lançados nas águas e da realização dos rituais de culto que têm lugar à beira da praia, momento em que a cidade pulsa ao ritmo contagiante da música e da dança.

Com uma história simples, mas com diálogos potentes e atemporais, a sequência vai além da festividade para desvendar as camadas mais profundas da cultura baiana ao tratar de temas como o da gentrificação de forma fenomenal, intercalando momentos dançantes com tópicos sérios quase como se o musical fosse um híbrido de documentário e ficção.

Um dos pontos mais notáveis é a maneira como o filme utiliza a cultura afro-brasileira como argumento principal para servir como base na trama do filme. A trilha sonora é impregnada de ritmos, proporcionando uma experiência sensorial rica e autenticamente baiana. As danças e as expressões artísticas presentes na obra ressaltam não apenas a beleza estética, mas também a herança cultural que permeia a sociedade.

Porém é válido ressaltar que o ponto mais vulnerável reside na montagem, que por vezes apresenta cortes bruscos, atrapalhando a entrega dos atores e comprometendo a fluidez da história, além de ocasionalmente, a linha de raciocínio do filme.

Ó Paí, Ó 2” utiliza simbolismos de forma marcante. A convivência forçada de personagens de diferentes classes sociais em um cortiço no Pelourinho se torna uma metáfora poderosa da miscigenação brasileira, das disparidades sociais e das relações interpessoais em um país marcado pela diversidade.

Os personagens, ricamente construídos e interpretados por um elenco talentoso do Bando de Teatro Olodum, encarnam arquétipos sociais que, embora exagerados em alguns momentos, servem como veículos para transmitir mensagens profundas sobre preconceito, tolerância e convivência.

De forma comovente, a integração da música com a imagem se entrelaça com cada personagem, que possui sua própria narrativa a ser explorada através de atuações aguçadas e convincentes com diálogos repletos de expressões típicas locais. Eles conseguem compartilhar seus sentimentos e emoções de maneira visceral, como se estivessem compartilhando parte de sua essência com o público, é a convergência entre ator e personagem. Tamanha intensidade parece contribuir de forma notável para equilibrar a trama, enquanto a paixão entregue pelos atores se expande para além da tela, ecoando na vida real.

O ciclo de renovação permeia toda a narrativa cinematográfica de “Ó Paí, Ó 2”, destacando de maneira significativa a personagem interpretada pela premiada atriz Luciana Souza, conhecida como Dona Joana. Ela simboliza todos os temas abordados na produção como um verdadeiro exemplo de mudança, profundamente imersa no luto dos eventos do filme anterior. Dona Joana emerge como figura central, protagonizando uma poderosa lição de empatia, transformação e acolhimento ao lado de Vinicius Nascimento, que retorna ao universo de “Ó Paí, Ó” em um papel mais do que especial após interpretar o filho de Joana, Cosme, no primeiro filme. A jornada de Dona Joana se desenha de maneira autêntica e genuína, quando ela abraça aqueles que enfrentam adversidades, oferecendo uma lição belíssima sobre a importância do acolhimento ao próximo.

Roque, brilhantemente interpretado por Lázaro Ramos, trilha uma jornada em busca do merecido reconhecimento, emergindo como o protagonista de uma das cenas mais impactantes no cenário audiovisual brasileiro. O clímax se desenha quando, por meio de um discurso poderoso, ele emite um rugido que ecoa como um trovão, ressoando com uma força indomável. Esse momento não apenas revela a maestria de Ramos como ator, mas também simboliza a afirmação de Roque contra as adversidades.

Ao adotar a narrativa antirracista como instrumento central, Roque transcende a tela, se apresentando como um agente de transformação. Seu discurso não é apenas palavras eloquentes, é um chamado à ação, uma ferramenta hábil para promover o letramento racial tão essencial em nossa sociedade. Nesse cenário, Roque não apenas conta sua história, mas também empodera outros a reescreverem as deles, catalisando uma conversa necessária e contribuindo para a construção de uma consciência coletiva mais inclusiva e informada no Brasil.

Apesar da cena ser fictícia, há uma clara metalinguagem em ação, pois, ao recitar seu diálogo, não é mais Roque no centro do palco, mas sim Lázaro Ramos. Nesse momento, a ficção transcende para a realidade, destacando a importância não apenas da representação artística, mas também do engajamento ativo na promoção da consciência racial e na luta contra o racismo no contexto brasileiro, do passado ao presente e do presente rumo a um futuro melhor de forma incisiva.

É imprescindível ressaltar o desempenho excepcional da atriz Lyu Arisson no papel de Yolanda, que se destaca como a protagonista de uma emocionante cena romântica, mas também transmite uma poderosa mensagem de empoderamento, destacando a importância da visibilidade trans. A interpretação de Arisson é notavelmente marcante, revelando um notável amadurecimento em relação à sua personagem desde o primeiro filme, onde era lamentavelmente retratada apenas como um objeto sexual, o que não é culpa do filme, mas sim da época em que foi produzido.

O musical político utiliza da comédia ácida e inteligente presente no filme não apenas para provocar risos, mas também convida à reflexão sobre as contradições e desafios enfrentados pela sociedade, destacando a dualidade entre a alegria efêmera e os problemas persistentes que persistem além dos dias de folia. Essa abordagem simbólica enriquece a narrativa, elevando o filme a uma obra que transcende o entretenimento puro.

Assim como o primeiro, “Ó Paí, Ó 2” é um tesouro do cinema brasileiro, uma manifestação política poderosa que, através de sua rica tapeçaria cultural, simbolismos perspicazes e personagens memoráveis, oferece uma crítica social aguçada tanto sobre empoderamento negro quanto à valorização de nossas origens.

Além de encantar com suas belas paisagens do Centro Histórico de Salvador e números musicais de alta qualidade, a diretora Viviane Ferreira desafia ativamente o público de forma direta a refletir sobre as complexidades da nossa sociedade, trazendo união entre a nova e a antiga geração de militância, promovendo valores fundamentais de respeito e união como pilares centrais de sua mensagem, deixando claro que a força está na coletividade.