por Raphael Guimarães
Por que o fim do Scrat é tão deprimente?
Tentando entender a melancolia causada por um esquilo comendo uma noz Em 2019, a Disney completou o processo de compra da 20th Century Fox e tomou a decisão de desligar o estúdio de animação Blue Sky Studios, conhecido por produções como Rio, Robôs, O Touro Ferdinando e, claro, sua franquia de maior sucesso, A Era […]
Tentando entender a melancolia causada por um esquilo comendo uma noz
Em 2019, a Disney completou o processo de compra da 20th Century Fox e tomou a decisão de desligar o estúdio de animação Blue Sky Studios, conhecido por produções como Rio, Robôs, O Touro Ferdinando e, claro, sua franquia de maior sucesso, A Era do Gelo (que completou 20 anos em 2022). Como forma de despedida antes que o estúdio de fato fechasse, animadores da casa produziram uma cena final que foi publicada em Abril no Youtube: uma sequência de trinta segundos em que o esquilo Scrat, de A Era do Gelo, consegue pegar e comer a noz que perseguia incessantemente ao longo dos cinco filmes da franquia. Mas não sei porque estou narrando isso aqui como se fosse novidade, todo mundo já sabe disso, foi anunciado em vários veículos de mídia.
O que é curioso, na verdade, é a diferença entre como alguns veículos fizeram esse anúncio e como o público reagiu a ele.
Os portais de notícias e páginas no Twitter noticiaram a publicação do vídeo como uma comemoração, um ato festivo. “Ele conseguiu”, “finalmente” e “momento tão esperado” foram termos muito utilizados nessas postagens, enxergando o ato de Scrat comer a noz algo como o Naruto se tornando hokage, o Pinóquio se tornando um menino de verdade ou a Mulan salvando a China do exército dos hunos. Como se fosse uma história cumprindo o seu objetivo principal, alcançando o que sempre almejava e dando um desfecho satisfatório pro público.
Entretanto, êxito e sensação de conclusão não foi bem o que o público sentiu. Muito pelo contrário, o relato de bastante gente foi como o da atriz e influenciadora Brenda Safra, que tuitou:
No lugar de feliz, boa parte do público alegou se sentir angustiada, morta por dentro e frustrada depois de assistir o vídeo.
Mas por que isso acontece?
Primeiro, o motivo mais óbvio – a Disney.
É fácil dizer que essa angústia vem da razão desse vídeo existir. Se não fosse a morte do estúdio Blue Sky, não haveria a necessidade de produzirem esse “curta de despedida”.
Um outro tweet que viralizou abordando essa questão foi o do artista 3D Victor Gazzetta, que ironizou:
Pensar o “último curta do Scrat” como uma conquista ou conclusão satisfatória é uma falsa ilusão de chegar a um local que se pretendia, já que esse fim é uma despedida de artistas que tiveram seu trabalho interrompido por uma empresa maior que não via interesse comercial em manter vivo um estúdio que não fosse o deles.
Quatrocentos e cinquenta pessoas perderam seus empregos e projetos foram cancelados (como a adaptação cinematográfica do quadrinho Nimona, que a Netflix assumiu e está em produção) para que os funcionários do estúdio pudessem se despedir do personagem Scrat e da franquia A Era do Gelo, animando uma cena que eles nunca tiveram a intenção de animar.
O que nos leva ao próximo ponto – o Scrat NUNCA deveria conseguir pegar a noz.
Existe sim uma estrutura de história e narrativa em que o protagonista é apresentado a um objetivo, atravessa diversas aventuras enquanto busca por esse objetivo e, ao fim da trama, alcança tal meta como acontecimento final da história. Conhecida como monomito (ou Jornada do Herói), a fórmula foi observada e estabelecida como tese pelo escritor e mitologista Joseph Campbell, em seu livro O Herói de Mil Faces.
A teoria se aplica em várias histórias conhecidas por nós, desde escritos religiosos (como Jesus, Buda e Prometeu) até filmes e personagens de cultura popular como os, já mencionados, Naruto, Pinóquio e Mulan. Mesmo nos filmes de A Era do Gelo a jornada do herói se faz presente com os protagonistas tendo suas metas sempre concluídas no desfecho dos longas, sejam elas entregar um bebê humano de volta a seus pais ou escapar de um mundo subterrâneo habitado por dinossauros (uau, que franquia!).
Entretanto, a busca infindável de Scrat pela noz nunca foi pensada como uma jornada que se encaixasse nessa fórmula que, apesar de ser a mais popular e aclamada, não é a única forma de se contar uma história. Diferente do mamute Manny e seus amigos, Scrat segue uma jornada mais parecida com a de outros personagens que jamais terão seus objetivos alcançados. E essa é a graça!!
O Frajola nunca vai comer o Piu-Piu. O Cebolinha nunca vai derrotar a Mônica. A Equipe Rocket nunca vai roubar o Pikachu. E o exemplo mais adequado de todos: o Coyote nunca vai capturar o Papa-Léguas.
Wile E. Coyote, criado pelo animador Chuck Jones em 1949, surgiu como uma paródia dos consagrados desenhos de “perseguição gato e rato” como Tom & Jerry que, lá no fim dos anos quarenta, já eram aclamados e partes da cultura popular americana. Nos curtas, o coiote sempre tenta (e nunca consegue) capturar o super veloz pássaro papa–léguas utilizando os planos mais elaborados, o equipamento mais avançado e as estratégias mais tecnicamente complicadas possíveis. Nunca dá certo e, de alguma forma, o feitiço sempre vira contra o feiticeiro e é o coiote quem se dá mal no fim de cada segmento dos curtas.
Scrat carrega em si muito de Wile E.Coyote, tanto em sua aparência magra, piedosa e esquisita quanto na estrutura narrativa de suas aventuras: Uma mistura de lei de Murphy com o Mito de Sísifo.
A lei de Murphy é o conceito básico de que “se algo pode dar errado, dará”. Ampliado ao extremo para efeito cômico (como tudo em desenhos animados), “tudo que pode dar errado, dará”. Em histórias que seguem a tal Jornada do Herói, a ansiedade que se causa nos espectadores é a de “como ele vai conseguir escapar dessa e salvar o dia?”. O spoiler de um filme de herói nunca é SE ele vai vencer ou não, mas sim COMO ele vence. Já na fórmula que Scrat, Coyote e, sei lá, o Dick Vigarista seguem, a apreensão está sempre em como é que vai dar tudo errado. Ele tá quase conseguindo pegar a noz/comer o pássaro/ganhar a corrida maluca! Vai lá, história. Me mostra como ele vai falhar. Por favor!! Eu quero dar risada!!
Somado a isso, há o mito de Sísifo. Sísifo, na mitologia grega, é conhecido por ter recebido o castigo de eternamente ter que rolar uma pedra até o topo de uma montanha para que, ao chegar lá, ela sempre rolasse de volta para baixo fazendo com que ele recomeçasse o trabalho infindável. Não importa quanto esforço Sísifo pôs na tarefa, ela estava fadada ao fracasso. E por mais que isso pareça triste, quando aplicado aos desenhos animados é algo na verdade bem divertido e que funciona como um entretenimento cíclico e satisfatório.
O Scrat não morre. Ele sobrevive a piranhas, abutres, catástrofes e até a pressão atmosférica do espaço sideral. Não há risco para ele então tudo pode acontecer DESDE QUE ele nunca consiga comer a noz.
Enquanto o objetivo dele não for alcançado, ele tem razões para continuar existindo.
E é por isso que o vídeo é triste.
A tristeza não está somente na despedida ou no fato de ser “a última coisa” do personagem. Mesmo que o último curta do esquilo fosse feito, a lenda e o conceito dele estariam mantidos como algo eterno, cíclico e respeitado para sempre. Se ele come a noz, o objetivo (que nunca foi um objetivo de verdade) é alcançado e o esquilo perde o propósito de sua existência.
É parecido com o final de Vingadores – Guerra Infinita, em que Thanos derrota os super-heróis. Fica aquela angústia no peito, a sensação de que alguém conseguiu o que queria mas que a história não está no ponto que deveria estar. O que? O vilão ganhou? Mas no próximo filme os heróis voltam e derrotam ele, né? Não dessa vez. Ninguém vai voltar no tempo e impedir a noz de ser comida – mas eu totalmente assistiria esse filme.
Scrat come a noz sem trilha sonora em um curta sem empolgação. A noz é largada no chão, comida. O esquilo sai de cena. Para sempre.
Nos resta esperar que o Coyote nunca pegue o Papa-Léguas. Não sei se aguentamos mais essa.