Colunas 8 novembro, 2023
por Redação PerifaCon

Ferrari para além do tempo

Com exibição especial na cerimônia de encerramento da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Michael Mann exala toda sua admiração pelo magnata Enzo Ferrari em uma cinebiografia emocionante

 

Texto por: Hyader

Em um cenário cinematográfico dominado por cinebiografias, o diretor Michael Mann se mostra confiante ao traduzir o contexto histórico da época de maneira intrínseca na narrativa, sem parecer propagandista. Essa confiança se reflete na utilização do tempo como elemento principal da narrativa, tanto para ilustrar a avassaladora velocidade sonora da ação veloz dos carros quanto nos confrontos viscerais dos personagens na construção da história.

O tempo age tanto com seu efeito de destruição quanto com de criação durante o passar da história enquanto conhecemos a fundo um recorte sobre a história da família Ferrari. A habilidade de Mann como intérprete dos sinais do tempo, ao capturar o espírito da época, onde o mundo parece à beira do colapso a cada curva em alta velocidade, eleva “Ferrari” a um patamar de destaque, que ao lado de seus protagonistas, tornam esse passeio automotivo memorável.

Com o roteiro de Troy Kennedy Martin a direção de Mann flui perfeitamente com diálogos rápidos e secos, demonstrando uma habilidade excepcional em capturar o fluxo temporal de maneira tão orgânica que as cenas de carros velozes, apesar de sua natureza frenética, adquirem uma sensação subjetiva de lentidão e reflexão.

Esse sentimento não se limita apenas às cenas de corrida, mas também se estende aos duelos entre os protagonistas, interpretados por Adam Driver e Penélope Cruz, com uma exposição desnuda e teatral que transmitem de forma impactante o processo de cura do luto do casal enquanto entramos na casa da família Ferrari durante o verão de 1957.

O verdadeiro protagonista na narrativa de “Ferrari” é o próprio tempo, que se desenrola de maneira implacável e inevitável. Essa representação visual e emocional do tempo como um elemento central na história é exemplificada pela criação e destruição dos belos carros de corrida italianos que servem como pano de fundo para a produção, ao mesmo tempo em que atuam como sombras estéticas que assombram os personagens, camuflados nos belíssimos cenários presentes na biografia.

Essas paisagens não apenas embelezam o filme, mas também simbolizam a natureza efêmera da vida e a constante mudança que os personagens enfrentam rumo ao último circuito Mille Miglia da história, uma viagem de ida e volta entre Bréscia e Roma.A genialidade do filme reside na escolha de manter a história separada em duas linhas paralelas. Uma delas se concentra no processo de luto da família Ferrari, enquanto a outra enfoca a corrida contra o relógio para salvar a empresa da falência. Essas duas linhas narrativas funcionam em paralelo, apresentando as diversas camadas do protagonista, criando uma tensão palpável entre o passado, presente e o futuro.

Enquanto a família Ferrari enfrenta a dor e as dificuldades do luto, a empresa luta para transcender as limitações do tempo e do mercado para forjar um legado sólido, tão duradouro quanto o metal, como conhecemos hoje.

No primeiro segmento da narrativa, destacado pela deslumbrante performance de Penélope Cruz no papel da matriarca Laura Ferrari, somos introduzidos a todo o contexto da família após a morte de seu filho Dino. Cruz faz uso de diálogos curtos e expositivos, mas sua verdadeira habilidade reside na maneira como ela se comunica com a audiência através de seus olhares e trejeitos corporais. Cada gesto e movimento de seu corpo é uma expressão de sua profunda tristeza, revelando sua fragilidade emocional enquanto esconde uma força avassaladora. Laura Ferrari, interpretada por Cruz, é como um carro esportivo rugindo quando a situação exige, demonstrando uma força interior que está pronta para se manifestar a qualquer momento.

No segundo segmento, somos cativados pela brilhante atuação de Adam Driver que com alguns efeitos práticos desaparece para dar espaço para o ex-piloto Enzo Ferrari brilhar, um homem ansioso, viciado em velocidade, que busca a perfeição no mundo automotivo por amor ao hobby. Ele dança uma valsa em dois fronts diferentes, destacando sua habilidade versátil como ator. De um lado, testemunhamos o duelo no contexto familiar, à medida que lida com a decomposição de seu casamento com Laura de maneira delicada, demonstrando genuinamente seu respeito velado por sua esposa.

Por outro lado, vemos o empresário astuto, repleto de artimanhas e estratégias exóticas, enquanto luta para evitar a falência de sua empresa e concentra sua energia na busca pela vitória de seus corredores na corrida que definirá seu legado. Essa dualidade na atuação de Adam Driver oferece uma riqueza de nuances ao personagem, fugindo da exaltação exacerbada, e cativa a audiência com sua complexidade e profundidade do personagem.

Cada elemento é perfeitamente reconstruído, dos sons dos carros aos minuciosos detalhes dos veículos, com um humor sofisticado, Mann brinca com o público com sacadas geniais em cada curva nas cenas de alta velocidade. A tensão é habilmente criada por meio de uma introdução em preto e branco que simula uma transmissão antiga de televisão, adicionando uma qualidade nostálgica à narrativa.

Esse recurso, embora caricato em sua representação, desempenha um papel importante na exploração das motivações do protagonista ao retratar de forma metafórica como o mundo e os Ferrari, por consequência, mudaram no período pós-guerra.

Com uma trama simples e focando na atuação de seus atores ao invés da velocidade imponente de carros esportivos, “Ferrari” entrega uma narrativa escópica, isto é, uma narrativa que se concentra na observação detalhada e na exploração visual, em vez de se basear apenas na ação arrebatadora dos carros de corrida.

Essa abordagem audaciosa de Michael Mann permite ao público se conectar profundamente com os personagens que enfrentam seus limites e fazem escolhas que estão além de seu controle rumo ao legado que a Ferrari representa até hoje. 

O desfecho surpreendente enriquece a narrativa, contribuindo para uma experiência cinematográfica impressionante e imprevisível, ao mesmo tempo em que exploram de forma comovente os temas de aceitação, reinvenção e renascimento na vida.