por Redação PerifaCon
“Propriedade”: Em meio a onda de privatizações, um debate sobre a luta de classes e a subjetividade da propriedade privada
“Primeiro a gente pensa nos vivos, depois cuida dos mortos”
Texto por: Hyader
“Propriedade“, dirigido por Daniel Bandeira, é um notável suspense que utiliza de forma magistral os momentos de silêncio, aliados a uma trilha sonora agonizante repleta de tonalidades graves e agudas. Essa escolha musical é crucial para estabelecer e aprofundar a atmosfera do cenário rural, capturando a essência do ambiente de maneira excepcional.
O elenco se sobressai ao capturar momentos autênticos de exposição, causando uma imersão que conduz o público em uma jornada única através do decorrer da trama repleta de simbolismos. Com palavras breves e diálogos ressecados pelo sol, eles retratam com autenticidade a natureza de seus personagens, enquanto os olhares, entrelaçados à melancolia, transmitem uma carga poderosa de firmeza e convicção. Este conjunto de elementos proporciona uma imersão cativante e visceral na narrativa, conectando profundamente o público à essência emocional e temática da história.
O diretor, ao equilibrar habilmente o grau de humanidade ao longo da produção, como numa balança, se mostra como um excelente intérprete da essência humana, explorando de forma contínua os diferentes níveis de humanidade expressos por cada grupo de personagens durante a trama, mesmo estabelecendo claramente quem é o herói e quem é o vilão. A direção de Daniel merece destaque pela habilidade em conduzir o ritmo do filme, permitindo que a tensão cresça organicamente junto com a brutalidade, culminando em um desfecho impactante e cheio de nuances.
A metáfora da separação física pelo vidro blindado na cena entre a estilista e os trabalhadores da fazenda vai além do contexto cinematográfico, atuando como uma representação poderosa das divisões sociais. O vidro blindado simboliza a barreira que abafa a voz dos trabalhadores enquanto tentam negociar melhores condições, evidenciando uma dicotomia entre os detentores dos meios de produção e os trabalhadores, um conceito fundamental na teoria de Marx sobre as relações de classe.
O filme explora essa dinâmica de maneira profunda, mergulhando nas tensões sociais e nas disparidades de poder. Revela os contrastes marcantes entre dois universos que coexistem, porém, separados por uma barreira quase intransponível. Essa abordagem cinematográfica não apenas expõe as realidades distintas, mas também destaca a iminência de um conflito latente entre essas esferas sociais, ecoando os pontos críticos da teoria marxista.
A representação da propriedade privada e da desigualdade de classes como elementos recorrentes na trama ressalta a feroz divisão entre aqueles que controlam os meios de produção e aqueles que são explorados por essa dinâmica desigual. Embora seja uma representação ficcional, a narrativa do filme oferece um reflexo da sociedade contemporânea, revelando de maneira crua e realista como o sistema funciona: o rico cada vez mais rico e o pobre cada vez mais miserável. Através dessa metáfora visual, somos confrontados com a crueldade das disparidades de classe e a perpetuação das estruturas de poder que sustentam a desigualdade.
A força do filme é personificada pela atriz Zuleica Ferreira no papel de Antônia. Sua capacidade de unir os personagens por meio do diálogo é notável, aglutinando todos na fazenda em prol de um objetivo comum. A resiliência de sua personagem enfrenta bravamente todos os desafios apresentados pela trama. É através do olhar penetrante de Antônia que o tema se materializa gradualmente, enquanto suas atitudes estratégicas não apenas dão forma aos resultados, antes tidos como surreais, mas os transformam em uma realidade concreta e palpável.
É importante ressaltar a performance de Malu Galli no papel de Teresa. Mesmo com poucas falas, ela consegue transmitir todo o contexto histórico de sua personagem de maneira excepcional. A atuação extraordinária da atriz é capaz de encapsular uma gama de emoções intensas, como desespero, desprezo, raiva, ingenuidade e medo, proporcionando ao público uma experiência emocional complexa e contraditória que adiciona camadas importantes para a compreensão das mensagens que o filme busca passar. Sua interpretação do roteiro é um testemunho brilhante do poder da expressão não verbal e da habilidade de transmitir uma história completa por meio da linguagem corporal e da presença em cena.
Daniel mergulha de forma poética na realidade brasileira, onde a falta de diálogo entre as classes sociais se torna cada vez mais evidente com o avanço da precarização sistêmica do trabalho, isso quando ele não é análogo a escravidão. É uma cobrança mais do que necessária, mas também instiga o público a refletir, debater e questionar sobre questões sociais essenciais, canalizando nossos desejos na direção de um futuro mais justo e igualitário. Sua mensagem não tem medo de apontar para as rachaduras do capitalismo, instigando o debate sobre a luta de classes e a subjetividade da propriedade privada.
Com um final aberto, “Propriedade” é mais do que uma simples narrativa política, é uma experiência multifacetada que se assemelha a um teste de Rorschach social, no qual manchas de tinta são usadas para explorar a mente e as percepções das pessoas, revelando verdades profundas muitas vezes negligenciadas. Como as manchas de tinta em um teste de Rorschach, esta obra desafia o público, fazendo um convite para enxergar além da superfície e confrontar as complexidades subjetivas das relações humanas, expondo as nuances das estruturas de poder, identidade e propriedade que muitas vezes são ignoradas.