Colunas 9 setembro, 2022
por Raphael Guimarães

‘Pinóquio’ sonha em ser um filme de verdade

Live-action de clássico escancara o quão mecânico e previsível é o cinema atual da Disney Em um tweet recente, o youtuber, músico e autor Sr. Balcão chamou o momento atual do cinema estadunidense de “pós-cinema”, alegando que estamos vivendo uma era em que Hollywood se auto-referencia e se auto-parodia com frequência, deixando que o público […]

 

Live-action de clássico escancara o quão mecânico e previsível é o cinema atual da Disney

Em um tweet recente, o youtuber, músico e autor Sr. Balcão chamou o momento atual do cinema estadunidense de “pós-cinema”, alegando que estamos vivendo uma era em que Hollywood se auto-referencia e se auto-parodia com frequência, deixando que o público e o marketing tenham mais controle sobre o que acontece em um filme do que o artista.

Provas desse fenômeno seriam acontecimentos como o lançamento do SnyderCut após campanhas feitas por fãs, a troca do modelo 3D do filme do Sonic para um aprovado pelo fandom e até mesmo o reaproveitamento do design original do personagem como forma de piada em Tico & Teco: Defensores da Lei.

Uma era em que talvez não sejam os artistas que determinam o caminho que a arte segue e sim o público ou, o que é ainda pior, os executivos. Pinóquio, nova produção da Disney dirigida por Robert Zemeckis, contribui com essa sensação. 

O criador encara a criatura no fundo de seus olhos. Reprodução: Disney

O filme, assim como a maioria dos live-actions de clássicos da Disney e uma porção das produções Marvel, pouco soa como um filme que busca contar uma história e provocar sensações no espectador. A impressão que temos ao assistir a obra é que ela foi construída com o único objetivo de provar que Scorsese tinha razão sobre os blockbusters atuais.

A trama é a mesma do filme de mesmo nome, lançado em 1940, dirigido por Hamilton Luske e Ben Sharpstein, além de ser também baseada no conto original de Pinóquio escrito pelo autor italiano Carlo Collodi. Na história, o carpinteiro Gepetto (Tom Hanks) cuida de sua amada loja de relógios e vive uma vida tranquila ao lado de seu gato Fígaro e seu peixinho dourado Cleo, ambos feitos em um CG que com certeza custou mais do que custaria arrumar um gato e um peixe de verdade para gravar as cenas em que aparecem.

Quando o carpinteiro deseja profundamente que um de seus bonecos de madeira, o simpático Pinóquio, fosse um menino de verdade, a Fada Azul (aqui com a presença impactante e voz marcante de Cynthia Erivo) aparece e concede a vida à marionete, que desperta inocente, sorrindo e com a voz de Benjamin Evan Ainsworth.

Ao ensinar ao menino que a parte de dentro é mais relevante do que a de fora, a Fada o deixa na companhia do Grilo Falante, desempenhando o papel de sua Consciência. Confesso: se minha consciência tivesse a voz do Joseph Gordon Levitt eu andaria na linha.

O Grilo Falante. Reprodução: Disney

Mas, por azar, o Pinóquio não sou eu e, em busca de se tornar um menino real e trazer orgulho a seu pai, o boneco mata aula, cai nas mãos de um maligno dono de show de marionetes e até acaba sequestrado por um cocheiro maligno que rouba crianças para transformá-las em burros puxadores de carroça (mas, pelo menos, é o Luke Evans).

Então, se o filme segue a mesma premissa e fórmula narrativa do original (que venceu dois Oscar), ele é bom. Bem, caso a frase anterior fosse dita pelo próprio Pinóquio, você sabe o que aconteceria, né?

É MENTIRA! Reprodução: Disney

O que ocorre aqui é o mesmo que em outros remakes que a Disney tem feito ao longo dos últimos anos, como A Bela e A Fera, O Rei Leão e até mesmo o de A Dama e o Vagabundo (o meu favorito). É como se colocassem o filme original em uma peneira pra retirar tudo o que “não presta mais” só que sem avaliar conscientemente o que está sendo alterado. Por exemplo: o filme dos anos 40 certamente é um daqueles que começam com um “alerta de anacronismo” no Disney+, avisando que a animação reproduz estereótipos e costumes que não são aceitos atualmente.

Lá, Pinóquio e outras crianças, após serem levados à força para a Ilha dos Prazeres, fumam charutos e bebem cerveja. Na versão de 2022, o “prazer proibido” é beber refrigerante em vez de cerveja. E nada de charutos aqui, a Disney não quer dizer pra criançada que fumar é bacana. Mas isso faz sentido?

they see me rolling, they hating…” Reprodução: Disney

Walt Disney podia não ser a melhor pessoa do mundo mas nunca foi de interesse dele, ou de qualquer outro envolvido no Pinóquio original, incentivar que as crianças bebessem e fumassem. Obviamente. Toda a sequência da Ilha dos Prazeres na animação representa aquilo que soa bom mas é errado, o que deve ser evitado independente das tentações que provoque. É parte da mensagem final de Pinóquio que mostra que tudo o que se deseja pode ser conquistado caso feito através de honestidade, bons costumes e ausência de mentiras. Cortar 100% a presença de álcool e cigarros no live-action não apenas indica medo de ser mal interpretado mas também uma preguiça de trabalhar algo delicado que fosse entregue efetivamente. Jogada muito esperta para os negócios, péssima e pouco ousada para a arte. 

As mudanças no remake não são só a partir das possíveis polêmicas, mas também na estrutura que a trama segue.

Embora o filme original seja adaptado de um romance, sua narrativa se assemelha muito a um poema ou fábula que não respeita muitas regras de roteiro, sendo cheio de acontecimentos que não se justificam e interferências deus ex-machina da Fada Azul. Mas não incomoda, já que as cores e a animação fluida feita à mão pela Disney quarentista dão um tom lúdico e leve para a história que indica ao público que o foco não está literalmente no que está acontecendo e sim na sensação que o filme passa e na mensagem que se aprende durante o longa. 

Já que a versão de 2022 se trata de um filme encenado com atores, a técnica não ajuda nessa parte e a história precisou ser reescrita para que essas lacunas fossem preenchidas: o que resulta em novos personagens como a gaivota Sofia (Lorraine Bracco) e a garota Fabiana (Kyanne Lamaya), o que não faz o filme ganhar nada além de tempo de duração.

Além disso, a participação de Gepetto aumenta e a da Fada diminui, o que é positivo para que Pinóquio possa exercer um protagonismo mais heróico e de mérito, embora seja uma pena que Cynthia Erivo apareça (e cante) tão pouco durante o filme. 

A mudança mais interessante em relação ao roteiro é que, com a transição de fábula poética para narração aventureira, o personagem inocente e que “nasceu ontem” de Pinóquio podia parecer simples demais, sem profundidade e com pouca nuance. Por isso, nessa versão o boneco precisa lidar com uma questão pessoal sua: a dificuldade de confiar nas pessoas. Vem meio que “do nada” mas conforme a trama se desenrola acaba fazendo sentido um personagem que é ludibriado TANTAS VEZES ter esse tipo de conflito interno. Com o desfecho do filme (que, devo avisar, é diferente do desenho clássico), o protagonista finalmente ganha um arco que o desenvolve e enriquece, tendo surgido de si mesmo e sendo superado por si mesmo. Algo semelhante ao arco de “não gostar de ser chamado de franguinho” que o Marty McFly enfrenta em De Volta Para o Futuro 2, não coincidentemente também dirigido por Robert Zemeckis. 

Foto da pré-estreia do filme com o elenco. Da esquerda pra direita: Luke Evans, Benjamin Evan Ainsworth, Tom Hanks, Cynthia Erivo e Robert Zemeckis.

Lembrar que este é um filme de Zemeckis chega a ser triste. Nos leva de volta ao ponto do início do texto. De que adianta recontar uma história se as partes mais interessantes dela não cabem no formato que você propõe? De que adianta o Tom Hanks no filme se o brilhantismo do ator não tem chance de ser visto? Pra quê um live-action sobre um boneco de madeira em que o boneco é computação gráfica e não de madeira? Que diferença faz a lenda do Zemeckis na direção se o que vai importar, no fim das contas, é quantas frases clássicas do filme original estão na obra ou quantas referências de animações velhas você encontra na loja de relógios do Gepetto?

A conclusão que se tira do mais recente filme da Disney (já disponível no Disney+) é que enquanto os números e os algoritmos forem mais importantes para a construção do filme do que a existência de uma visão artística, não há Fada Azul no mundo que possa transformar Pinóquio, de 2022, em um filme de verdade.