Colunas 14 novembro, 2023
por Redação PerifaCon

“Pedágio”: Uma denúncia ao poder destrutivo da desinformação para a humanidade

A melancolia de um mundo cada vez mais retrógrado e controlador, que, por teimosia, se recusa a reconhecer o direito de cada indivíduo de viver a sua vida conforme a sua própria escolha e vontade.

 

Texto por: Hyader

Pedágio“, sob o comando visceral de Carolina Markowicz, emerge como uma invocante crítica ao devastador poder da desinformação na sociedade contemporânea. No contexto do filme, servindo como uma metáfora ácida e objetiva para o fundamentalismo religioso que invadiu e sequestrou o cenário nacional nos últimos anos, abordando de maneira impactante a opressão e a violência vivenciadas pela comunidade LGBTQIA+, com uma narrativa crua, porém bela e sensível, ao mesmo tempo que convoca o espectador a uma série de reflexões necessárias para o nosso tempo.

O filme gira em torno do angustiante dilema de uma mãe, Suellen, interpretada de forma belíssima por Maeve Jinkings. Apesar de amar incondicionalmente seu filho, se preocupar com sua segurança e seu bem-estar, ela não entende e tampouco busca compreender seu filho. Ela se encontra em uma encruzilhada, coagida por seu círculo social que, alienado pela simplicidade da vida religiosa e conservadora do interior, a pressiona a submeter seu filho, Tiquinho, que ganha vida através do olhar firme e delicado do talentoso Kauan Alvarenga, a um controverso processo de “cura gay” conduzido por um pastor estrangeiro.

A narrativa, ambientada num clima de outono, expõe as consequências trágicas da desinformação ao evidenciar como a adesão a soluções baseadas em premissas falsas pode levar a escolhas extremas, deixando um rastro de impactos negativos nas vidas das pessoas envolvidas. 

Profundamente penetrante, destaca a maneira como a crença acrítica em soluções ilusórias desencadeia uma cascata de eventos trágicos, culminando até mesmo na destruição irreparável das próprias vidas. instigando a reflexão sobre a fragilidade da sociedade diante de narrativas distorcidas.

Markowicz demonstra maestria ao não apenas explorar a dimensão pessoal dessa história, mas também ao habilmente contextualizar os perigos associados à disseminação irresponsável de informações. Sua destreza atinge novos patamares ao incorporar críticas e menções sarcásticas, quase como um elemento cômico, que retrata, de maneira astuta, as falas diretas do governo autoritário e conservador de Bolsonaro através de metáforas e analogias inteligentes. Esse toque perspicaz não apenas torna sua narrativa envolvente, mas também a eleva para o status de uma análise aguda dos desafios enfrentados em meio a uma era saturada de informações controversas.

Com uma cinematografia imersiva e introvertida, balanceada com performances palpavelmente realistas, ela mergulha sua produção em tons que vão desde o calor intenso do amarelo vibrante até o fascínio sedutor misterioso do laranja, culminando de maneira impactante na deslumbrante tonalidade do rosa choque. Essas escolhas cromáticas também comunicam uma mensagem mais profunda sobre o ambiente retratado, contrastando de forma impactante com a atmosfera e ambientação nublada de Cubatão, cidade que já foi considerada a mais poluída do mundo.

Nessa cena inicial, a diretora, enquadra Suellen em meio a um ambiente vasto, para transmitir de maneira impactante a solidão que permeia sua jornada diária para o trabalho. Ao escolher mostrar a protagonista em um espaço aparentemente desproporcional, a diretora utiliza a linguagem como um prelúdio simbólico dos desafios emocionais que aguardam Suellen. A insignificância da personagem em relação ao cenário sugere não apenas sua posição física, mas também simboliza sua vulnerabilidade emocional, e esse recurso serve para explicar as motivações e desafios que moldaram seu percurso ao longo da trama.

O termo “pedágio” transcende a simples taxa de passagem, assumindo uma dimensão simbólica que vai além da interpretação convencional, especialmente quando relacionado à mensagem do filme. Ele se configura como uma travessia compulsória, uma barreira imposta que não apenas implica um custo financeiro, como tradicionalmente concebido, mas também impõe uma carga emocional significativa. Na trama, o pedágio se torna um reflexo vivo da experiência dos personagens, confrontados não apenas com a necessidade de pagar uma taxa monetária, mas também com a imposição de uma “taxa social” como condição para atender às expectativas da sociedade.

A metáfora associada ao termo “pedágio” vai além da estrutura física de cobrança, refletindo as decisões familiares de Suellen e Tiquinho. Sob intensa pressão social e devido à precarização do trabalho, ela se vê compelida a se corromper, dada a falta de opções mais viáveis, recorrendo a utilizar seu emprego para obter uma renda extra ilegalmente.

Essa decisão dramática é impulsionada pela imposição da suposta “cura gay” para seu filho, evidenciando a interseção entre as barreiras sociais e as exigências financeiras. Assim, o pedágio emerge como um ponto de convergência entre a necessidade de superar obstáculos tangíveis e a luta contra imposições ideológicas prejudiciais.

Neste cenário desolador, a ausência do Estado é evidente, agravando a precarização do trabalho e ampliando as lacunas sociais. Não há um sistema que ampare Suellen e outros em situações semelhantes, contribuindo para a perpetuação de condições adversas. Esta ausência estatal cria uma dinâmica de destruição programada, colocando a sociedade de frente para o abismo. A falta de intervenção e suporte governamental intensifica a vulnerabilidade das pessoas, as tornando reféns de escolhas extremas, como a corrupção por necessidade, delineando um quadro social sombrio e inquietante como exaltado pelo filme.

O grande trunfo da produção reside na sinergia avassaladora entre Markowicz e o elenco, que executam uma dança harmoniosa pelos temas complexos e sociais presentes no texto, onde cada passo e movimento revelam camadas mais profundas da narrativa.

Após sua colaboração com a diretora no filme “Carvão“, a atriz Aline Marta Maia retorna com maestria no papel de Telma, a amiga e único apoio de Suellen. Mesmo diante dos conselhos equivocados, os momentos de amizade genuína entre as duas personagens desempenham um papel crucial na construção do clima da produção. Esses momentos não apenas oferecem os únicos instantes de alívio cômico na produção, mas também desempenham com perfeição o papel de temperar a trama. Mais do que isso, a relação entre Telma e Suellen se revela como uma peça essencial para garantir que a mensagem proposta pelo filme atinja seu alvo de maneira certeira.

São detalhes explícitos que emergem de forma pontual na atuação dos protagonistas, Maeve e Kauan não precisam de palavras para transmitir as complexidades das questões sociais abordadas, transformando a sala de cinema em um campo de combate onde as ideias são disputadas e as emoções são desvendadas com intensidade para defender suas convicções e, por consequência, seu próprio direito de viver.

Markowicz exalta brasilidade e toma seu tempo com um olhar poético para explorar o universo de “Pedágio”, permitindo que o público possa absorver cada cena com calma e reflexão, construindo tensão gradualmente em um ritmo sereno e com foco na imersão apresentada pela ambientação. Todo esse cuidado é para que seus personagens recebam a liberdade de exalar expressões faciais, gestos delicados e olhares intensos, que funcionam como uma linguagem simbólica entre mãe e filho, conduzindo o espectador por um intrínseco enredo de sentimentos que simulam com perfeição a vida real.