por Redação PerifaCon
Ficções de fã e saúde mental: como a Fanfic pode ser levada (muito) à sério
Eu digo e repito que a Mulher-Maravilha salvou a minha vida. Texto por: Larissa Moreira Fui uma adolescente, por um bom período de tempo, que apenas queria deixar de viver. Que pensava diariamente em formas de fazer isso acontecer. Mas existia um lugar nessa existência onde eu me sentia confortável, talvez o único. Era o […]
Eu digo e repito que a Mulher-Maravilha salvou a minha vida.
Texto por: Larissa Moreira
Fui uma adolescente, por um bom período de tempo, que apenas queria deixar de viver. Que pensava diariamente em formas de fazer isso acontecer. Mas existia um lugar nessa existência onde eu me sentia confortável, talvez o único. Era o universo dos super-heróis. Os meus quadrinhos tantas vezes foram a única companhia desejável. Dentre eles, Diana Prince, a princesa amazona, havia se tornado a minha melhor amiga.
Como eu me sentia sozinha nesse mundo de heróis, não tinha amigos nem colegas de escola que compartilhavam do mesmo amor, eu precisava encontrar uma maneira de expressá-lo. Comecei desenhando enquanto minha paixão pelo universo da Mulher-Maravilha crescia lado a lado com o meu interesse pelas aulas de História. Chegou um momento em que não bastava mais apenas ler suas histórias, eu havia criado muitas outras versões delas na minha cabeça.
Enquanto implodia um movimento de mulheres no Irã, eu queria levar a Mulher Maravilha até lá. Assim, a minha primeira fanfic eu intitulei “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Teerã”. Eu adorava “Mulheres de Atenas” do Chico Buarque e a fanfic era isso, essa miscelânea onde eu poderia misturar tudo o que eu mais amava, fazer junções improváveis de referências que me importavam. A Mulher-Maravilha foi, inclusive, um grande empurrão para a carreira que eu decidi seguir, a de historiadora.
Diana Prince salvou minha vida porque era através das fanfics que eu conseguia trabalhar internamente dilemas emocionais da minha adolescência. Eu inventei uma filha para a amazona e essa filha possuía, inicialmente, as mesmas questões que eu em relação a minha mãe. Ali Diana teve uma filha e não a criou. E através da fanfic eu me obrigava a migrar entre o lado da mãe e da filha nessa história. Ali eu tinha um lugar de escuta para minha dor e um lugar de entendimento para quem me infligia essa mesma dor.
A Psicóloga Clínica e Construcionista Social Tatiane Maria da Silva, que trabalha com arte-terapia e inclui as fanfics nos processos terapêuticos, afirma que elas “representam uma releitura e uma ressignificação de várias histórias, de várias narrativas, de vários enredos, de vários contos que nós já conhecemos como contos e vivências canônicas da nossa literatura” e, por isso, possuem um significativo potencial terapêutico. Eu não estava apenas ressignificando a história da Mulher-Maravilha, eu estava ressignificando a minha própria história.
Hoje, mais de uma década depois, em uma sessão com Tatiane, eu me surpreendi quando ela informou o que eu só sabia de experiência, não de teoria; que as fanfics têm uma capacidade ímpar de reduzir a ideação suicida entre jovens.
“A fanfic passa a ser uma produção de sentido que direciona a energia. Ela tem um funcionamento de engajamento, de motivação de interesse. Você é visto e revisto nessa história que você recria e isso gera conexão com a vida. Eu posso recriar [uma história] com base no que eu acredito e eu existo nisso à medida em que o outro lê. Sua individualidade colocada sobre aquela história é escutada. ”
Hoje, mais de uma década depois de quando eu escrevia e não havia tantos espaços para divulgação, há uma infinidade de possibilidades de publicação, aplicativos e sites especializados. As fanfics estão em todas as redes sociais sendo criadas nos mais diversos formatos. Segundo Tatiane, elas têm um público amplo e maior ênfase entre jovens adultos de 16 a 35 anos. “É um fenômeno da atualidade, faz parte do hall de leituras e vivências de muitas pessoas que utilizam não só como entretenimento, mas como uma forma de ser e estar no mundo. ”
Mas apenas nos últimos 5 anos as fanfics começaram a surgir no cenário clínico. Para Tatiane, que trabalha com arte-terapia, trabalhar com fanfics é um movimento ousado e expande o conceito do que é considerado arte. Ela explica a inclusão das fanfics como se “ao invés de enrijecer o conceito de o que é arte ou não, eu posso pegar o que o cenário social produz e potencializar na vida da pessoa ” e a fanfic é “uma produção social bastante atual que tem funcionado na vida das pessoas como uma narrativa não só de entretenimento mas de ressignificação. É uma forma que as pessoas se utilizam para falar de si. ”
Quando eu entrei na faculdade, parei de escrever fanfics. Minha personagem de quadrinhos preferida hoje é outra, enfrentei tantos outros monstros me utilizando de outras ferramentas. Eu achei que as fanfics nem existiriam mais, até Tatiane me convidar a trazê-las para nosso processo terapêutico. Eu acho que eu nem levava fanfic à sério mais… Mas elas estão por aí salvando vidas.