Banner 8 março, 2022
por Raphael Guimarães

Uma carta de amor ao Wolverine

Como o carcaju da Marvel se tornou meu personagem favorito Existe uma lenda urbana muito curiosa sobre a criação dos X-Men. Chamo de lenda urbana porque é uma história que foi sempre contada por Stan Lee (co-criador de vários dos super-heróis mais conhecidos da Marvel Comics) e nós bem sabemos que não dá pra encarar […]

 

Como o carcaju da Marvel se tornou meu personagem favorito

Existe uma lenda urbana muito curiosa sobre a criação dos X-Men. Chamo de lenda urbana porque é uma história que foi sempre contada por Stan Lee (co-criador de vários dos super-heróis mais conhecidos da Marvel Comics) e nós bem sabemos que não dá pra encarar como fato tudo que o “the man” da editora dizia.

Enfim, a história é a seguinte: em 1963, a Marvel precisava lançar uma nova revista de super-heróis que tivesse não um herói protagonista, mas sim uma equipe (principalmente devido ao sucesso estrondoso que os gibis do Quarteto Fantástico vinham fazendo). Stan criou os personagens e seus poderes, mas estava empacado em uma questão. Qual seria a origem dos poderes desses heróis? Tudo precisa ter um começo, as coisas precisam vir de algum lugar. Antes de ver seu personagem vestir um collant e lutar contra o crime, você precisa saber um pouco sobre COMO ele chegou ali, o porquê dele ser o Ciclope e não somente Scott Summers. Mas que desculpa ele inventaria? Qual faltava dar? Já tinha usado raios gama com o Hulk, radiação com o Homem-Aranha, acidentes cósmicos com o Quarteto e até misticismo já tinha sido gasto com o Thor. Foi aí que o estalo veio. E se eles já nascessem com poderes? Mutantes! 

No documentário Stan Lee’s Mutants, Monsters and Marvels, o autor disse “Eu imaginei como seria se eles fossem apenas mutantes. Nós sabemos que existem mutantes no mundo – existem vegetais mutantes, árvores mutantes, sapos…”

E claro, não estou contando essa história só por contar. Eu preciso dar um jeito desse texto ser sobre mim. Sim, sobre mim. Não que eu esteja dizendo que sou um super-herói nem nada, mas assim como Stan não queria começar um gibi sem antes explicar da onde vinham as habilidades do herói, não acho que faz sentido começar a escrever uma coluna semanal num portal ilustre como esse sem falar um pouco da minha formação como nerdola palestrinha. 

E assim como Stan Lee, vou apelar para os mutantes. Ou melhor, para um mutante específico.

O Wolverine

Na foto abaixo sou eu com 15 anos tirando foto com brinquedos da RiHappy sem comprar.

Você conhece o Wolverine. Também conhecido como Logan, o mutante canadense com garras de metal e fator de cura foi criado em 1974 por Len Wein, Roy Thomas e John Romita e embora tenha aparecido primeiro em uma revista do Hulk, ficou popular de verdade só quando entrou para a equipe dos X-Men, se tornando também um dos X-Men mais populares e queridos pelo público. E ele é meu personagem favorito. Não dos X-Men. Não da Marvel. Não só meu super-herói favorito, mas sim o meu personagem favorito da ficção como um todo. Meus motivos pra isso caminham entre os emocionais e os racionais. Comecemos com os emocionais então.
Como eu conheci o Wolverine? Foi provavelmente assistindo X-Men Evolution no Bom Dia E Cia que vi o carcaju pela primeira vez mas não dei muita atenção. Falando hoje como alguém que é obcecado pelo personagem, acho até que não é um bom desenho pra se familiarizar com ele. Ele parecia meio deslocado por lá. Enquanto os outros personagens tinham seus enredos sempre voltados para temáticas adolescentes, ele participava mais do “núcleo adulto” do desenho, o que fazia com que várias interações clássicas que poderia oferecer não acontecessem – como a amizade com o Noturno ou até o triângulo amoroso envolvendo Ciclope e Jean Grey. Enfim, o Logan tava lá, eu assistia, mas não foi ali que o amor nasceu. Nosso romance é um pouco mais How I Met Your Mother do que isso.

Wolverine em X-Men Evolution. Reprodução: Warner Bros. Television Distribution

A questão é que os gibis que eu lia, os filmes que eu via e os desenhos que eu assistia não eram nada além de diversão. Eu amava, gastava horas com aquilo, me entusiasmava, mas não chegava a entrar no espectro nerd do negócio. Não entrava na pira de querer saber tudo sobre aquilo, de ir mais a fundo e nem de querer explorar algum daqueles universos. Era um fã saudável, digamos. Aí veio o ano de 2009.

Eu tinha onze anos de idade. Hugh Jackman já era Wolverine há quase uma década. Estava sendo lançado o fatídico filme X-Men Origens: Wolverine, dirigido por Gavin Hood. Hoje é quase um consenso que esse filme é uma porcaria. Feito de chacota pelo público, detonado pela crítica e ignorado pelas produções seguintes com o personagem no cinema – mas pro pequeno Raphael, era o melhor filme do mundo. Fiquei meses me imaginando com garras de adamantium. Fazendo SNIKT com a boca enquanto colocava três lápis entre os dedos das mãos pra brincar sozinho de Wolverine quando não tivesse ninguém olhando. E foi no meio dessa pequena obsessão que resolvi comprar meu primeiro quadrinho do Wolverine. Fui na banca e comprei a edição 60 da revista Wolverine, publicada pela Panini. Essa edição aqui:

Reprodução: Guia dos Quadrinhos

Essa  capa sempre me perturbou, inclusive. O fato do Xavier sentado ter a mesma altura do Logan em pé. Me arrepia. Mas enfim, o gibi. Ele vinha com quatro histórias mas as duas primeiras foram o bastante para me mostrar tudo (ou pelo menos MUITO) que o mutante com esqueleto de adamantium podia me oferecer. Veja bem, com os filmes do MCU hoje já se é sabido por todo mundo que o universo Marvel é uma das coisas mais bagunçadas e complexas que existem na ficção. Sabe-se que tem aliens, mutantes, magos, robôs, monstros, espiões, cientistas, deuses, clones, gente que volta dos mortos e até organizações que controlam o tempo.

Isso hoje está nos filmes e nas séries da Marvel, mas lá pra 2009 ainda era uma exclusividade dos quadrinhos. Claro que existiam os filmes dos X-Men e o primeiro Homem de Ferro já tinha saído, mas até ali tudo ainda estava muito contido. Por isso a minha surpresa ao abrir o gibi e descobrir uma CONFUSÃO de informação. Não a ponto de me deixar perdido mas sim a ponto de me fazer querer organizar aquilo nas minhas ideias. 

A primeira história era a parte 4 de Velho Logan, história de Mark Millar e Steve McNiven que mais tarde viria a se tornar uma das mais clássicas do personagem, servindo de base para o aclamado filme Logan. A história se passa em um futuro distópico, cinquenta anos depois dos vilões terem conseguido dominar a Terra e extinguir os super-heróis. Logan, que há anos não atende pelo nome de Wolverine, aceita acompanhar um velho amigo em uma viagem de carro pelos Estados Unidos em troca de um dinheiro que será útil para sustentar sua família. A história trata de uma versão mais velha, cansada e traumatizada do Logan em uma realidade que encara todo o status quo dos super-heróis como algo que faz parte do passado e da história daquela sociedade.

Agora imagina EU, que só conhecia o Wolverine do desenho e dos filmes, me deparando com uma história tão ‘fora da curva’ assim. Com apenas onze anos de idade, não estava esperando um gibi com a neta do mal do Homem-Aranha, dinossauros, esqueletos gigantes e, principalmente, um mundo em que os super-heróis perderam. Como assim perderam? Não eram heróis? 

Uma reflexão que hoje retiro disso é que a minha geração (sou de 1998) teve pouco ou nenhum contato com as versões clássicas e tradicionais dos super-heróis mais populares. Se você começou a ler quadrinhos nos anos 2000/2010, os personagens que você cresceu lendo já eram desconstruções de seus conceitos originais. O Wolverine foi criado como um personagem meio selvagem/meio soldado mas em Velho Logan ele já estava sendo tratado como um soldado pós-guerra traumatizado que tentava se desvencilhar da selvageria que lhe é imposta por seus poderes enquanto a selvageria do próprio mundo ao seu redor o força a usar de força bruta pra reivindicar dignidade. Era DEMAIS pra minha cabeça. Virou uma chavinha e pela primeira vez eu enxerguei o universo Marvel como algo extenso e conectado a ponto de poder ver um mapa que mostrasse os Estados Unidos dividido de acordo com os vilões que controlam cada território. Foi alucinante.

Reprodução: Marvel Comics

Como se não bastasse o meu primeiro contato mais próximo com HQ de heróis já ter sido com um futuro alternativo distópico, o gibi continuou. Ainda na edição 60 havia o quinto e último capítulo da história Pecado Original, com roteiro de Daniel Way e arte de Mike Deodato Jr. Se na história anterior eu já me senti na obrigação de me aprofundar no universo Marvel e literalmente estudar aquelas histórias e personagens, em Pecado Original eu fiquei entusiasmado como uma criança (okay, eu era uma criança) e nem precisei chegar até os quadrinhos em si pois logo na página de resumo a minha cabeça já entrou em parafuso.

Uma ideia que é constantemente atribuída a Stan Lee é a de que “todo quadrinho é o primeiro quadrinho de alguém” e por isso no início de cada história deve haver uma contextualização sobre quem é o protagonista e quais foram os eventos que o levaram até ali. Simples. Agora imagina a cabeça de uma criança ao chegar na “página de resumo” do gibi e encontrar ISSO AQUI:

Reprodução: Marvel Comics

Como alguém chama isso de resumo? Se era pra facilitar o entendimento, infelizmente falhou. Se antes o que eu sabia sobre Wolverine era só fator de cura e garras de metal, saí dessa página com conceitos de Daken (o filho do Wolverine), Romulus, Clube do Inferno, Sebastian Shaw, amnésia, memórias falsas, controle mental, Srta. Sinistra e todo o histórico de Wolverine no Japão que até então me era desconhecido. Foi um “uau”. Já estava louco antes, fiquei mais louco depois. 

Relendo essa história, percebo que nem é tão boa. A arte é apelativa e toda a trama mental do Xavier passeando pela cabeça de Logan & filho é proposital e desnecessariamente confusa. Li essa semana e entendi o mesmo tanto que em 2009, tem muito blá-blá-blá pra pouco pof-snikt-pow, sabe?

Foi a cena final dela que me pegou. Depois de derrotarem o vilão Romulus, Wolverine convoca seu filho Daken para buscarem vingança enquanto Charles Xavier tenta convencê-lo do contrário. Ocorre o seguinte diálogo.

– Não. Esse caminho irá levá-lo de volta ás trevas, Logan. Quer mesmo arrastar seu filho junto? De todos os meus atos egoístas, o que fiz com você…

–  O que me fez? Tu salvou minha vida, cara! Caraca, me deu uma vida! As memórias voltaram, Charlie. Mas, no tempo entre perder e recuperar minhas lembranças, levei uma vida de que posso me orgulhar…fui herói.

– E o que é hoje?

– O que cê tá vendo.” 

Explodiu a minha cabeça. Foi a primeira vez que um super-herói com nuance entrou no meu radar. Ele é um X-Men, ele salva pessoas, ele derrota vilões e ainda assim estava ali planejando vingança. Ferido e pensando em resolver uma pendência a partir de métodos incorretos. Ele erra, ele peca, ele não se orgulha das coisas que fez. Ele mata, se vinga, mente, trai. E ainda assim, lá está ele de uniforme colorido, azul e amarelo, as cores de uma equipe de super-heróis. Nuance. Isso me deixou maluco.

Esse gibi me motivou a continuar comprando e lendo as revistas do Wolverine como acredito que motivaria qualquer jovem que estivesse sendo apresentado àquilo de maneira tão repentina. Ao longo dos próximos meses, MUITA coisa aconteceu com o Wolverine. Ele foi enviado pro Inferno por uma organização que o odiava, voltou do Inferno, se vingou da organização, lutou contra ninjas japoneses,abriu uma escola (talvez a empreitada mais inesperada pro personagem) foi pro espaço, lutou contra clones de si mesmo, foi possuído pela Força Fênix e inclusive morreu (mas voltou). Não houve um único segundo em que meu eu jovem quis parar de acompanhar aquelas aventuras. Ia ficando cada vez mais complicado mas em nenhum momento ficou complicado demais pra eu continuar gostando e me interessando cada vez mais por aquele personagem que sintetizava tão bem tal universo.

Muita gente odeia o Wolverine. Uma das coisas mais comuns em fóruns de fãs de X-Men e quadrinhos Marvel é encontrar pessoas que dizem não gostar do personagens. Um dos motivos é ele ter se tornado tão popular e ter forçado os roteiristas a darem mais espaço pra ele, tirando o protagonismo de outros integrantes dos X-Men como o Ciclope e o próprio Charles Xavier, tanto nos quadrinhos quanto nos filmes. Outra razão seriam as mudanças que o personagem foi sofrendo ao longo dos anos, deixando de ser somente um mutante bestial e ‘brucutu’ para se tornar um professor, um pai, um conselheiro, mentor, entre várias outras coisas que aconteceram ao Logan e se distanciam da pura natureza selvagem de Wolverine.

Sobre a primeira razão, sou obrigado a dizer que entendo.

Caso eu fosse fã do Ciclope, da Jean Grey ou até do Magneto, também ficaria chateado de ver um outro herói protagonizando várias sagas e arcos  enquanto o meu favorito não recebe tanto destaque. 

Agora sobre o segundo motivo, eu não poderia discordar mais. É fácil de dizer que Logan realmente foi apresentado como um personagem sem substância, puramente físico e agressivo tal qual outros ‘brucutus’ da Marvel, como Venom, Cable e os primeiros anos do Deadpool, mas assim como os outros heróis citados, o carcaju foi ganhando profundidade e um alcance mais amplo ao longo dos anos.

Há quem diga que as histórias do baixinho canadense só são interessantes quando focam nos seus aspectos mais selvagens e animalescos, o que é um absurdo. Essa pauta realmente é interessante mas não é a única possível. 

Wolverine nasceu mutante com poderes semelhantes a de um animal e, como um animal, foi submetido a testes e experiências genéticas. Isso o coloca como “algo diferente dos humanos” não só por ser mutante mas também por ter sido animalizado pela humanidade. Ainda assim, é a sua falta de civilização que o torna tão real e humano quando se tratam de seus defeitos: ele tem traumas, culpa, pecados, é vingativo, bebe, fuma, trai, mente e coleciona dezenas (centenas, talvez) de casos amorosos e carnais com diferentes personagens da Marvel.

Além disso, Logan possui o dom da regeneração. Ele se cura de ferimentos e não envelhece. Ele está vivo há décadas. O que originalmente foi criado somente como um demonstrativo de força e elemento que deixava o personagem mais ameaçador e perigoso se tornou, com o passar dos anos, uma ferramenta de evolução dele. Tendo tantos anos, é possível que tenha vivido décadas em locais e épocas específicas (como todas as histórias que se passam no Japão), ido a lugares inimagináveis (como o espaço ou o inferno) e feito coisas muito distantes da ideia original do personagem (como se tornar um diretor de escola e professor conselheiro de jovens mutantes arruaceiros).

Acompanhar quadrinhos de super-heróis é muito mais gostoso e saudável quando se entende que o formato permite passear entre o adulto e o infantil, entre o otimismo e o reconhecimento de erro, entre o fantástico e o absurdo. Em uma edição, viagem no tempo. Em outra, vingança sanguinária. Em uma edição, lutas contra ninjas. Em outra, amnésia. 

Foi lendo gibis do Wolverine que descobri o que me encantava em super-heróis. A possibilidade de representar heroísmo, ação e aventura sem se preocupar tanto com a consistência. É possível ser um cara sério e quebrado e ainda ser um herói de roupa colorida.

Quando o assunto é representar, quase que inteiramente, o gênero de super-heróis, é justo dizer: Wolverine é o melhor no que faz.