por Redação PerifaCon
Um filme mais do que necessário, o manifesto de ‘The Kitchen’
Como um conto de advertência, um dos primeiros lançamentos do ano na Netflix, apresenta um envolvente drama humano em meio à tecnologia opressiva. O filme explora de maneira audaciosa as vozes silenciadas e a resistência coletiva, proporcionando uma reflexão profunda sobre controle e liberdade.
Texto por Hyader Epaminondas
A estreia de Daniel Kaluuya como diretor, ao lado de Kibwe Tavares, em “The Kitchen“, proporciona uma experiência cinematográfica envolvente e surpreendente. O filme mergulha nas complexidades da ficção científica, utilizando uma paleta de cores predominantemente frias, tingidas de azul para refletir a situação inicial dos personagens. No entanto, à medida que o personagem Bengi ganha espaço na vida de Izy, o filme sutilmente transita para cores mais quentes, simbolizando a transformação e evolução emocional dos protagonistas de forma natural.
De maneira audaciosa, a obra explora uma ambientação saturada por uma tecnologia opressiva e sufocante, e acerta em se concentrar em um drama humano palatável como ponto focal da trama. A narrativa aborda as nuances das relações interpessoais em meio a um cenário futurista, proporcionando uma reflexão sobre a natureza humana diante das adversidades tecnológicas.
O suspense político construído em “The Kitchen” tem raízes em elementos da vida real, enfrentando questões complexas como moradia, gentrificação e os desafios na luta por direitos humanos. Em contraste com a tendência de romantizar a miséria, o filme aborda de maneira direta a terrível sensação de falta de escolhas diante das adversidades da vida e da carência de direitos básicos, ressaltando a diluição progressiva dessas questões na sociedade contemporânea, muitas vezes obscurecida pela grande mídia.
A narrativa transporta o público para um mundo ficcional que, paradoxalmente, ressoa de forma assustadoramente próxima à nossa realidade. A representação do bairro periférico como uma espécie de prisão, com cercas invisíveis como instrumentos de controle opressor, evoca reminiscências históricas. Essa alegoria para as periferias de Londres serve como um alerta para os rumos da sociedade, imersa em uma tecnologia muitas vezes redundante, que, ao invés de enriquecer nossas vidas, nos impede de vivê-las plenamente.
“The Kitchen” emerge como uma afirmação e um discurso político explícito, transmitindo poesia audiovisual através de metáforas claras sobre o presente e o destino inevitável da nossa sociedade. A trilha sonora, com batidas por vezes abafadas, ecoa a luta diária dos moradores, enquanto os momentos de lazer os transportam para um mundo subterrâneo colorido, criando um contraste impactante.
Essa escolha musical, que frequentemente apresentava uma dualidade musical, alternando entre momentos intensos e cenas mais descontraídas, não só enriquece a experiência, mas também contribui para a construção de uma atmosfera sonora coesa e envolvente em “The Kitchen“.
A sagaz incorporação do locutor da rádio “Lord Kitchen” transcende as barreiras da narrativa, rompendo a quarta parede para dar voz à comunidade que, de forma sistemática, é silenciada e apagada. Essa estratégia revela como um instrumento perspicaz para cultivar um sólido senso de coletividade entre os habitantes, destacando a força e a resiliência que emergem quando vozes anteriormente silenciadas se unem em um coro de resistência.
A jornada de amadurecimento do personagem Bengi, sua integração à vida de Izi e as forças que operam em paralelo na trama estabelecem laços envolventes e íntimos entre os personagens. Essa interligação vai além da simples relação entre os personagens e seus dilemas individuais, transformando em um eco participativo, onde as experiências compartilhadas na tela se entrelaçam com as vivências do público, reforçando a mensagem de que, mesmo diante da retirada de direitos básicos pelo Estado, apenas a coletividade pode ser uma fonte poderosa de resistência e renovação.
A direção belíssima de Kaluuya e Tavares revela uma apreciação minuciosa por cada detalhe presente em cena, conferindo vida a objetos aparentemente comuns e atribuindo novos significados. Essa abordagem meticulosa transcende a mera estética visual, se tornando um veículo para a construção de uma narrativa visualmente revolucionária, percebida através dos olhos sensíveis e eloquentes dos personagens.
Na essência da produção, é apresentada uma sociedade coesa e complexa, repleta de camadas de significantes palatáveis. Cada elemento representado no filme é cuidadosamente ponderado, dotado de um propósito intrínseco que contribui para a organização intrincada da trama. Os diálogos, por sua vez, não são meros veículos de exposição verbal, mas sim momentos de dúvida e resolução que ecoam em paralelo aos acontecimentos da narrativa, adicionando uma profundidade emocional e intelectual à experiência.
A significância do novo método de sepultamento com árvores transcende a mera prática funerária, é uma metáfora poética que lança críticas contundentes à desvalorização da vida humana. Este simbolismo ecoa como uma reflexão sobre a superficialidade com que questões cruciais, como a consciência ecológica, são relegadas a discursos simplistas e guiados pelos interesses financeiros.
“The Kitchen” é uma obra complexa que tece críticas sociais, políticas e estéticas, deixando uma marca profunda na percepção daqueles que assistem com coração e olhos abertos.