Colunas 17 agosto, 2022
por Thaís Hern

Sandman: Pelo direito de ser

Quem define a aparência que a Morte pode ter? Antes mesmo da estreia de Sandman, e assim que o próprio Neil Gaiman anunciou o cast em seu Twitter, o nerdola-médio lançou seu racismo ao vento. Foram inúmeros textões sobre como as infâncias seriam arruinadas com a escolha de uma mulher negra para interpretar personagem tão […]

 

Quem define a aparência que a Morte pode ter?

Antes mesmo da estreia de Sandman, e assim que o próprio Neil Gaiman anunciou o cast em seu Twitter, o nerdola-médio lançou seu racismo ao vento. Foram inúmeros textões sobre como as infâncias seriam arruinadas com a escolha de uma mulher negra para interpretar personagem tão icônico da cultura pop e mundialmente conhecida pelas características que remetem à subcultura gótica. 

“As pessoas falam ‘você estragou minha infância’ e eu fico nossa, que infância frágil. Mas também é tipo: eu agora no futuro arruinei a sua infância no passado? Isso é poderoso!” Kirby Howell-Baptiste respondendo a perguntas no perfil oficial da série

A Morte criada por Gaiman para as suas histórias não é o ceifador de vidas pronto para trazer a desgraça à casa daqueles que visita, mas sim uma mão amiga, um guia para a passagem para outra vida ou até mesmo aquela que abre os caminhos para que o inevitável ocorra de forma empática e carinhosa. Ela é mais do que a representação de características de moda alternativa, mas também esse conjunto de aspectos da vida que não pode ser encarado com dicotomia. O personagem possui em si todas essas camadas que de maneira alguma se anulam, tornando-a na verdade, mais complexa e interessante.

Ao escolher Kirby Howell-Baptiste, uma mulher negra de pele escura para assumir o peso de um papel amado pelo público e simplificado a descrição de “gótica fofinha”, os produtores da série, propositalmente ou não, provocaram o retorno de uma outra reflexão (pelo menos dentro da minha cabeça): Por que continuam a distorcer nossa auto-imagem ao ponto de mulheres pretas não conseguirem lidar com as suas próprias fragilidades na busca de sempre reproduzir uma fortaleza que muitas vezes não nos pertence?

Diálogo de Neil Gaiman com usuária do Twitter que diz gostar da performance de Kirby como Morte mas que sente falta da delicadeza e gentileza que a personagem original tinha, dizendo que não enxerga isso na personagem mesmo que os diálogos sejam exatamente os mesmos dos quadrinhos.

Felizmente nas redes sociais encontramos poucas opiniões como a exposta acima, em que para ela é impossível visualizar as características da personagem na atriz que a interpreta. Ou seja, é impossível identificar suavidade na interpretação de Kirby Howell-Baptiste, apesar de ser EXATAMENTE isso que a atriz entrega durante todo o episódio e de forma tão arrebatadora ao ponto de se tornar um dos principais destaques da temporada em todos os veículos especializados e redes sociais.

Então, o que há de errado? A @soroh no Twitter não é a origem do problema. 

A adultização das meninas negras

Foto: Arte de Ana Luiza Costa para / O Globo

Para explicar o fenômeno que impede a sociedade de enxergar mulheres negras como seres diversos e plurais, precisamos falar da infância.

Estudos realizados nos Estados Unidos sobre o título “Girlhood Interrupted: The Erasure of Black Girls’ Childhood‎‎ (Mocidade interrompida: O apagamento da infância das meninas negras)” indicam que adultos americanos pensam que meninas negras sabem mais sobre temas adultos e sobre sexo do que meninas brancas da mesma idade. E essas percepções são maiores quando se trata de meninas negras mais jovens de 5 a 9 anos e 10 a 14 anos. A discrepância continua em menor grau com meninas de 15 a 19 anos.

‎”Esta nova evidência do que chamamos de ‘adultificação’ de meninas negras pode ajudar a explicar por que as meninas negras na América são disciplinadas com muito mais frequência e mais severamente do que as meninas brancas em nossas escolas e em nosso sistema de justiça juvenil”, disse Rebecca Epstein, principal autora do relatório e diretora executiva do Centro de Pobreza e Desigualdade do Centro de Direito da Universidade de Georgetown.‎

Já no Brasil, de acordo com a plataforma “Violência contra a mulher em dados”, entre 2011 e 2017, mais de 45% dos casos de abusos sexuais registrados no Brasil foram de meninas negras de 0 até 9 anos. Quando analisamos os números referentes às meninas brancas, este percentual cai mais de 7%.

Deise Benedito, especialista em Relações Étnico-raciais e mestre em Direito e Criminologia pela Universidade de Brasília (UnB), afirma que “o  corpo da menina branca é protegido pela inocência enquanto o da negra é considerado sujo. O processo do racismo estrutural na sociedade brasileira rouba cruelmente a essência das meninas negras, e a “adultização” contribui para transgredir a infância, os sonhos e as fantasias infantis.”

Com esses dados concluímos que desde a infância mulheres negras não são vistas como sensíveis, frágeis e muito menos “góticas fofinhas”. O racismo nos obriga a ser uma fortaleza para aguentar as lutas diárias provocadas por ele, ao mesmo tempo que nos impede de explorar todas as nuances e possibilidades da vida, inclusive as estéticas.

Tão gótica que nasci preta!

SHE’S IN PARTIES de 1984 em East  Village. Foto: Fred Berger/ post-punk.com

Assim como a Morte de Kirby Howell-Baptiste, eu também encontrei problemas para ser vista como alguém que pode ser frágil, fofa, sensível ou até mesmo pertencer a uma subcultura como a gótica. Estereótipos são empurrados sobre os nossos corpos e se tornam também a nossa prisão improlífera.

Particularmente, eu demorei muito para permitir que toda a minha pluralidade viesse à tona.
O que significa que por muito tempo eu resisti a explorar outras possibilidades visuais, acreditando que era necessário manter uma estética de mulher-negra-suburbana-carioca, assim a vida seria teoricamente mais fácil porque eu seria menos questionada diante das minhas escolhas. Ledo engano.

A gente leva um tempo para entender que tudo que nasce com a gente e toda a experiência que nós adquirimos durante a vida tem peso igual para definir (ou não) aquilo que nós somos. Eu sou uma mulher negra, suburbana, carioca, que gosta de cabelos coloridos, roupas pretas, animação japonesa, escuto samba, mas também escuto post hard core… Nada disso me define, ainda assim tudo isso me pertence. 

Nós somos tantas, nós somos várias!

Como compartilhei no início do texto, essa reflexão não é novidade (dentro da minha cabeça, pelo menos) e a adaptação da personagem Morte em Sandman da Netflix não é a única representação de pessoas negras em sua pluralidade. Por isso, escolhi encerrar esse texto apresentando personalidades negras da vida real que são góticas, são fofinhas e são inspiração também!