Colunas 11 agosto, 2022
por Raphael Guimarães

Sandman e o inferno da Netflix

Um episódio que, sozinho, resume as adaptações de quadrinhos da atualidade   esse texto contém spoilers até o episódio quatro da série Sandman, da Netflix Trabalhar com adaptações deve ser uma coisa complicada. Parte do público prefere que, quando seu quadrinho ou livro favorito é adaptado para as telas, a fidelidade ao material seja extrema e […]

 

Um episódio que, sozinho, resume as adaptações de quadrinhos da atualidade

  esse texto contém spoilers até o episódio quatro da série Sandman, da Netflix

Trabalhar com adaptações deve ser uma coisa complicada.

Parte do público prefere que, quando seu quadrinho ou livro favorito é adaptado para as telas, a fidelidade ao material seja extrema e que todos os acontecimentos da obra original estejam de maneira literal na adaptação. Já uma outra parcela de quem assiste está contente em ver uma versão diferente da história original desde que ela seja satisfatória e tome boas decisões com as mudanças que fizer. Porém, existem algumas histórias que são um pouco mais difíceis de traduzir para o audiovisual com muita fidelidade justamente por possuírem narrativas às vezes inovadoras até para a sua própria mídia e trilharem caminhos não-lineares ou que brinca com estilos de narração. Esse é o caso de Sandman.

A série Sandman é uma produção da rara parceria entre a Warner e a Netflix e chegou na plataforma de streaming na última sexta-feira, cinco de agosto. A ansiedade dos fãs não era pequena e isso não é de se admirar já que essa é a primeira adaptação da clássica história em quadrinhos Sandman. O gibi foi publicado originalmente pela DC Comics de 1989 a 1996, desenhado por diversos artistas (o primeiro e mais definidor do estilo da revista sendo a lenda Sam Keith) e escrito por Neil Gaiman, um dos autores mais encantadores da história.

Tom Sturridge como Morpheus. Reprodução: Netflix

Ao mesmo tempo em que uma série de TV baseada em Sandman era algo muito esperado, era também algo muito temido. Seria possível uma tradução audiovisual representar bem um quadrinho que quebrava a linearidade da contação da história, personificava conceitos como o Sonho e a Morte e não seguia padrões lógicos nas horas de ser poético e abstrato? 

Bem, não dá para dizer se o mérito é da produção da série, dos seis diretores que ela teve ou até mesmo do próprio Neil Gaiman (que acompanhou de perto o desenvolvimento dos episódios) mas a série é boa. Não é um primor de fotografia ou de direção de arte, um problema recorrente em todo o contéudo de ação blockbuster atual, mas traz bons arcos de personagem, boas atuações e um excelente trabalho de suspense e construção de tensão, principalmente quando essa tensão depende  do elenco competente do programa (destaque especial para o David Thewlis, que interpreta o assassino John Dee com maestria). 

Entretanto, e isso talvez seja uma nerdolada desnecessária mas eu preciso botar pra fora: é meio triste perceber que uma história como Sandman não tem espaço para ser adaptada mais livremente no cenário atual. Você vê que foi feito com carinho e que a essência do quadrinho está sendo respeitada mas infelizmente ainda é bem visível o quanto as produções infantojuvenis que sejam próximas do gênero de super-herói estão fadadas a seguir certos padrões, o que nem sempre estraga a experiência mas muitas vezes limita o potencial de obras. 

Tudo isso pode ser exemplificado com um episódio específico da série. Episódio quatro, Uma Esperança no Inferno, dirigido por Jamie Childs e com roteiro de Allan Heinberg. A premissa é a mesma da dos quadrinhos: Sonho precisa recuperar seu elmo e vai até o Inferno resgatá-lo, travando um duelo contra o demônio que está com ele.

 Uma diferença da série pro gibi e que não gera nenhum incômodo é a troca dos lutadores. Enquanto na HQ a luta de Sonho é contra o demônio Choronzon (na série, interpretado pelo comediante Munya Chawawa), aqui quem enfrenta o mestre do Sonhar é o próprio Lúcifer, interpretado pela ótima Gwendoline Christie, a Brienne de Game of Thrones.

A decisão da troca é compreensível. Tudo que é produzido hoje precisa seguir um formato de franquia, o que obriga que histórias centradas em seus próprios arcos precisem ser descartadas para que a trama priorize acontecimentos que impactarão o futuro da série. Assim sendo, não haveria motivo para utilizar um demônio qualquer quando se tem Lúcifer, que será ainda mais relevante no futuro de Sandman. Deixa de ser um episódio só e vira uma parte de algo maior, algo que a Marvel inventou e infelizmente está em todos os lugares. 

Mas como já disse antes, isso não chega a fazer falta justamente porque se justifica com a atuação brilhante de Christie e a pobreza visual da série. Se pelo menos Choronzon fosse rosa e esquisito, valeria a pena vê-lo por mais tempo. Mas, assim como todo o inferno retratado na série, o visual foge do horror demoníaco e aposta mais em algo escuro, vazio e que mais parece uma dimensão sinistra de Guardiões da Galáxia do que algo que lembre o cenário diabólico cristão.

Após a configuração da luta ser definida, o embate começa. No quadrinho, a luta acontece com uma quebra de expectativa do leitor. Não é uma luta física, mas sim verbal. O desafio é que Sonho (na série retratado pelo esquisito Tom Sturridge que compensa com o vozerão) derrote o oponente numa discussão lógica. Se Choronzon/Lúcifer diz “eu sou um lobo”, Sonho diz “eu sou um caçador”. Se Sonho diz “eu sou um boi”, Choronzon/Lúcifer responde “eu sou uma bactéria”. Um tipo sobrenatural de batalha de rap ou um RPG, quase a versão original do embate entre Padre Quemedo e o filho do capeta, do Hermes e Renato. No gibi, todo o embate é visto como apenas uma conversa, acompanhada com um tom cômico e absurdo pela plateia infernal, que, de forma abstrata, é representada por desenhos de espectros azuis e rosas que vão ficando mais psicodélicos e com menos formatos lineares conforme a gravidade do que é descrito avança.

A luta é vencida por Sonho no momento em que ao ouvir que Lúcifer/Choronzon se coloca como a antivida, a besta-fera do juízo final, as trevas no fim da existência, o fim dos universos, deuses e mundos, responde: Eu sou a esperança. Emocionante, poético e extremamente original para um quadrinho publicado pela DC Comics. Uma luta entre duas entidades que começa e acaba sem nenhum dano físico, somente brincando com ideias e significados.

Já a versão da Netflix não é bem assim. O diálogo é fiel, quase que fala por fala. Mas enquanto a vitória na HQ é pautada simplesmente em perspicácia e intelectualidade, a adaptação não consegue entregar algo com essa grandiosidade sem apelar pra tradução física e gráfica. Enquanto os dois personagens propõem cenários que vão gradativamente se superando, montagens com efeitos especiais representam cada fenômeno citado de maneira que quando Lúcifer sugere ser a antivida, Sonho está caído no chão e quase sem conseguir se levantar.

O quadrinho entrega uma luta que não precisa de efeito carnal e se garante na conversa, trazendo uma superioridade temática para o misticismo do universo criado por Neil Gaiman. A série sucumbe a necessidade de uma cena empolgante para o fã se arrepiar e colocar no status do Whatsapp (e consegue, porque a cena é realmente muito legal), com direito até a personagenzinho animal falante servindo como fator motivacional, soltando um “dreams don’t fucking die”, uma tentativa de dar pra Sandman um bordão tipo o “friend’s don’t lie”  de Stranger Things ou um “cobra kai don’t die” de Cobra Kai

Morpheus me encarando depois de sutilmente criticar a série dele. Reprodução: Netflix

Não é decepcionante. É legal. A música ajuda o clima a ser estabelecido com sucesso, os efeitos especiais são eficientes e convincentes quando somados a performance talentosa da dupla de atores e o diálogo é não apenas bem escrito, como também entregue de forma impactante. Mas não é o Sandman quebrador de paradigmas que os gibis criaram.

É, pelo menos, uma forma excelente de conhecer o universo de Sandman. Assista a série e aproveite muito a experiência, mas não esqueça de ler o quadrinho. Vale muito a pena e te dará uma versão mais ousada da história que você assistiu.