Banner 17 novembro, 2022
por Redação PerifaCon

Racionais MCs: Das ruas de São Paulo pro mundo e pra História

Documentário do Racionais na Netflix ressalta a importância do grupo para o Brasil. Texto por Ivy Pires Eu tenho uma relação muito próxima e muito importante com o rap nacional e principalmente com os Racionais. Quando eu soube do documentário, eu já sabia que não importava quanta expectativa eu criasse, sempre seria superada, e não […]

 

Documentário do Racionais na Netflix ressalta a importância do grupo para o Brasil.

Texto por Ivy Pires

Eu tenho uma relação muito próxima e muito importante com o rap nacional e principalmente com os Racionais.

Quando eu soube do documentário, eu já sabia que não importava quanta expectativa eu criasse, sempre seria superada, e não deu outra.

(Atenção: Esse texto é 100% parcial)

Eu tenho poucas lembranças de infância, mas esperar dar 7 horas da noite pra sintonizar na rádio metropolitana e ouvir o Projeto Rap Brasil é a mais importante delas.

Dos meus 38 anos de existência, acompanhei os 30 anos do grupo.

Era 1990 e alguma coisa, todas as noites, no mesmo horário, eu e meu irmão sentávamos no quarto dele pra ouvir o programa. Eu ia torcendo pra tocar Pânico na Zona Sul. Com meus 9 ou 10 anos, eu não fazia ideia do quão perto ou longe era a tal zona sul, mas alguma coisa ali me trazia um sentimento de identificação muito grande. 

Reprodução: Netflix

Quando KL Jay menciona no documentário que muitas vezes se sentia culpado por não ser de favela, eu, nascida e criada em um bairro “bom” da zona leste, lembro de quando me sentia assim ouvindo Racionais, conhecendo pelas letras deles uma realidade que eu só veria na minha frente depois de muito tempo. Mas assim como KL Jay se sentiu aliviado quando descobriu que Jorge Ben não era da favela, eu também me senti assim, quando soube que ele era da zona norte, ali do ladinho de onde eu vinha.

Mas por que alguma coisa ali me tocava tão forte e tão cedo? Em Fim de Semana no Parque, Brown falava que a maioria por ali se parecia com ele. Meu irmão me perguntou uma vez se eu entendia o que aquilo significava, e depois de uma resposta que eu não lembro qual foi, mas obviamente errada, ele me disse “a maioria é igual a gente”, fazendo aquele sinal de passar o dedo no braço para sinalizar a cor. Ali, no início dos anos 90, eu comecei a entender muita coisa.

Em quase duas horas de documentário eu senti de novo toda aquela intimidade que eu sentia sentada do lado do rádio, conhecendo outras realidades, me sentindo parte de histórias que eu pessoalmente não vivi, mas que eram de pessoas tão semelhantes a mim e aos meus, que eu sentia a mesma raiva, a mesma tristeza, a mesma revolta, a mesma frustração.

Para além da história dos Racionais, o documentário é, para quem viveu junto, uma oportunidade de revisitar o passado, e para quem chegou depois, uma viagem no tempo. É imersivo, visceral. É colocar os pés no terrão do Capão Redondo e caminhar 30 anos em duas horas. É evoluir e amadurecer com eles. É ver a raiva se transformar em ambição, em esperança, e traçar um longo caminho de mutações e evoluções até chegar ao sucesso.

Reprodução: Netflix

Chega um momento em que a música é secundária. O documentário é sobre nós.

É sobre jovens pretos vivendo, sobrevivendo, existindo e resistindo. É sobre amadurecer, sobre usar a raiva como força motriz, é sobre canalizar as indignações, as mazelas, as decepções e transformar em ações. É sobre se identificar, seja pela vivência, pela cor da pele ou pela paisagem da sua quebrada, é ter onde se espelhar, é ter esperança. É acreditar que o céu é o limite e você, truta, é imbatível.

Racionais foi, é, e continuará sendo um capítulo importantíssimo da história do rap nacional, da cidade de São Paulo, e sobretudo, do movimento negro. Uma história sobre música, periferia, política,  sobrevivência e resistência. Não apenas um capítulo, mas uma aula inteira. Uma aula que começou sendo ministrada lá nos anos 90, com jovens sentados do lado de um radinho e que continuou até os jovens com seus fones sem fio e tocadores online.

Que assim como eles, nós possamos continuar ocupando espaços. Cada vez mais. Cada vez maiores. Que haja uma multidão de jovens pretos canalizando sua própria raiva e fazendo dela uma força transformadora.

Mas, como disse Ice Blue, que a gente não ocupe lugares de uma maneira que faça se acostumarem com a gente. Que a gente ocupe lugares de uma maneira que os incomode. Que não a gente não passe despercebido, que não sejamos dóceis.

O incômodo foi o que colocou Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edi Rock no mundo. E foi incomodando que eles fizeram história. Sejamos como eles. Que todo jovem preto saia da sua rua pro mundo, e que entre pra história.