Banner 8 março, 2022
por Thaís Hern

O Rock, o Cinema e o Elitismo

Nascida no subúrbio carioca, eu fui criada debaixo do guarda-chuva musical do meu pai. O mesmo homem que me ninava ao som de Triumvirat (banda alemã de rock progressivo) também animava os domingos pelos acordes de Jorge Ben, Raça Negra, Araketu e James Brown. Eu não tive do que reclamar. Ser eclética estava no meu […]

 

Nascida no subúrbio carioca, eu fui criada debaixo do guarda-chuva musical do meu pai. O mesmo homem que me ninava ao som de Triumvirat (banda alemã de rock progressivo) também animava os domingos pelos acordes de Jorge Ben, Raça Negra, Araketu e James Brown.

Eu não tive do que reclamar. Ser eclética estava no meu sangue, das avós baianas nos blocos de carnaval do bairro aos tios instrumentistas apaixonados por clássicos do sertanejo.

Foi na escola que eu aprendi a me podar. É impossível ser aceita em um grupo específico se você não tem ojeriza ao grupo oposto, certo? Errado! Mas vai explicar isso para adolescentes no início dos anos 2000, quando ser chamado de “farofeiro” era ofensa inafiançável. Você era obrigado a escolher o seu bando e na maior parte do tempo isso era definido pelo estilo musical presente no seu MP3, pelos botons presos em sua mochila, pela camisa de banda que conseguiria comprar e até mesmo por quão bom era o produto químico capaz de alisar a sua franja.

Ser um adolescente negro naquela época era para além de enfrentar as questões raciais ao longo da vida, lidar com ambos os lados te acusando de rejeitar a sua própria negritude, com a auto-estima desmantelada por um padrão estetico impossivel de alcançar (não importando quanta guanidina e chapinha você usasse) e ainda com o sentimento de não pertencer a diversos espaços. Chega a ser tão engraçado quanto traumático falar sobre isso em 2022, sabendo da existência de Sister Rosetta Tharpe, respirando o mesmo ar que Tina Turner e diariamente resgatando a história do rock para dizer que sua origem é preta e pobre.
O rock nasceu na periferia, nas esquinas, no som feito por gente negra. Nasceu do blues e do country, ambos ritmos essencialmente negros, por mais que tentem nos convencer do contrário. Criaram um multiverso do racismo, uma linha do tempo alternativa, onde o som que cantava as tristezas de uma vida difícil se transformou num reflexo da juventude burguesa, cansada dos seus privilégios e pronta para dançar. Depois, fantasiaram o rock com peças criadas por Vivienne Westwood e ainda que exaustos se quebraram em mil vertentes constantemente em guerra para saber quem é mais rock and roll e quem é poser. 

Seguidos anos do rock afastado do mainstream nos fizeram esquecer o quão nocivo e hipócrita esse público pode vir a ser, agora também nos espaços virtuais. Mas o retorno do gênero aos holofotes — graças a jovens artistas, estratégias de marketing e o revival do emocore/pop punk  — ressuscitou termos como “rockeiro de verdade” e “rock é compromisso” num mundo em que muitos dos seus representantes são fascistas, racistas e reacionários.

Reprodução: (@CludineyCogo) via Twitter

Eles se apropriaram e elitizaram o gênero criado por gente pobre e preta, redefiniram as regras do jogo e não deixaram ninguém mais brincar. Você precisa caber em expectativas, precisa preencher o requisito. Requisito esse que insiste em se afastar do que é a raíz do rock, mas que também tenta limitar a produção, o acesso e a criatividade quando diz quem pode ou não participar.

Eu me pergunto quem é esse tal rockeiro de verdade? Quem é responsável por aprovar a minha carteirinha e analisar a minha história?

Reprodução: Abdução Filmes

No curta A Retirada Para Um Coração Bruto, do mineiro Marco Antônio Pereira, um senhorzinho chamado Ozório sobrevive isolado na zona rural, lidando com o luto e a solidão ao som do rock na rádio. A produção ganhou diversos prêmios, inclusive o Kikito de melhor ator para o repentista Manoel do Norte que interpreta o protagonista. 

O curta-metragem não só tocou meu coração por ser encantador, mas também por me lembrar que as perguntas anteriores tem apenas uma resposta: ninguém! Ninguém define por você quem você é ou o que pode ser, nem quantas vezes pode renascer ou se transformar. Não somos adolescentes dos anos 2000! Rock wins é brega pra caramba! Assim como cobrar carteirinha de rockeiro para quem quer que seja, de estrelas do pop nacional à idosos no interior de Minas Gerais.

A necessidade de podar o outro limita a nossa capacidade intelectual, a possibilidade de identificarmos pelo caminho as referências que irão construir os tijolinhos da nossa criatividade. Elitizar qualquer tipo de conteúdo empobrece os frutos que a diversidade pode gerar.

Marco, o diretor do curta citado acima, disse o seguinte durante a Mostra de Cinema de Tiradentes: “Eu tenho pensando muito nesse processo de fazer filmes e o quanto tem mais coisas para atrapalhar a gente do que pra ajudar, sabe? (…) E gente também que não quer ver pessoas das periferias e do interior fazendo seus filmes e ocupando certos espaços. Tem gente que torce o nariz, acredite ou não. Tem gente que se puder atrapalhar o máximo possível vai atrapalhar. Mas ultimamente eu tenho pensando muito sobre isso. E eu tenho pensado sobre a mágica que existe nesse cinema possível, do braço da gente mesmo. Da gente com os nossos amigos. Se não rolou nenhum edital, você vai pegar a sua câmera velha que filme em 720p e vai fazer um filme. Se você não tiver uma câmera, você vai desenhar no Paint e vai fazer o seu filme. E o seu filme vai chegar em algum lugar e vai tocar alguém. E isso é muito libertador porque o tempo inteiro que você quer fazer cinema eles jogam na sua cara assim: você não é compatível. Você tem que se moldar pra você fazer cinema. Todos nós temos direito de fazer o filme que a gente quer porque isso é dignidade. A gente tem direito de ser quem a gente nasceu pra ser. E quando eles pedem pra gente nos formatar e largar a nossa identidade, isso é perverso.”

O mundo é perverso quando nos separa em grupos, elitiza a arte, os processos artísticos e nos faz acreditar que esses espaços não nos pertence, nem para apreciá-los e muito menos para concebê-los. Começam nos podando quando somos sementes para que a gente nunca chegue ao ponto de acreditar nas possibilidades. Mas eu acredito muito nesse cinema possível que é tanto do Marco, quanto de todos nós em periferias espalhadas pelo país. Acredito que a gente ergue pontes quando compartilha. Acredito também no poder de construir e se reapropriar das nossas histórias, ainda que seja com uma guitarra ou uma câmera usada. Acredito no poder que existe na ação de acreditar.