por Raphael Guimarães
Nossa Bandeira é…o Orgulho? : A série dos piratas LGBTQIA+
Como a série de comédia revisita os clichês de masculinidade Junho é o mês do Orgulho LGBTQIA+. Foi no mês de junho, em 1969, que os frequentadores de um bar gay em Nova York se recusaram a ser revistados pela polícia e iniciaram a chamada Revolta de Stonewall, que durou cinco dias e ficou marcada […]
Como a série de comédia revisita os clichês de masculinidade
Junho é o mês do Orgulho LGBTQIA+.
Foi no mês de junho, em 1969, que os frequentadores de um bar gay em Nova York se recusaram a ser revistados pela polícia e iniciaram a chamada Revolta de Stonewall, que durou cinco dias e ficou marcada para sempre como um divisor de águas para os ativistas LGBTQIA+, que na época não usavam essa sigla, já que após a revolta várias cidades passaram a criar medidas pelos direitos dos homossexuais e nasceram também as passeatas do orgulho gay. Assim sendo, o mês de junho se tornou tradicionalmente o chamado Mês do Orgulho, com o Dia do Orgulho sendo no dia 28 (mesmo dia em que a revolta teve início em 1969).
Em 2022, o mês de junho começou com uma notícia que alegrou muito algumas pessoas (inclusive EU, que tô escrevendo o texto). No dia 1 de Junho, foi confirmada oficialmente uma segunda temporada para Nossa Bandeira é a Morte, série de piratas da HBO que une aventura, romance e comédia, criada por David Jenkins.
Nossa Bandeira é a Morte é levemente baseada na história real do aristocrata Stede Bonnet que abandona a família e a vida de burguês da classe alta para se tornar um pirata. A bordo da embarcação Revenge, Stede (interpretado por Rhys Darby) lidera uma tripulação nada convencional e desenvolve uma relação intensa de romance e amizade com Ed, o Barba-Negra (interpretado por Taika Waititi, que também assina a produção da série e a direção do primeiro episódio).
É claro que é uma coincidência que a notícia da renovação tenha saído justamente no início do Mês do Orgulho mas também não é como se a série não tivesse nenhuma relação com o Orgulho LBTQIA+. Muito pelo contrário, além do humor ácido e teatral que a trama traz (algo bem semelhante com as comédias de Mel Brooks dos anos 80), o diferencial do show é como ele trabalha a masculinidade de cada um de seus personagens, remodelando o que se espera de piratas no imaginário popular com uma narrativa envolvente, sensível e responsável.
A começar por como a série encara as sexualidades dos personagens.
Popularmente, a figura de piratas é geralmente associada a homens selvagens, criminosos sem pudor e fascinados pela violência. Isso acontece tanto em obras onde os piratas são os vilões (como o Gapitão Gancho, de Peter Pan) como nas que eles são heróis, onde esse potencial caótico é convertido em diversão e irreverência, como o Jack Sparrow de Piratas do Caribe ou o Luffy de One Piece. Por motivos óbvios, esses atributos são normalmente relacionados à personagens heterossexuais mas em Nossa Bandeira é a Morte há uma abordagem naturalmente queer para a temática de piratas.
Depois que os primeiros personagens abertamente gays aparecem na série, meio que tudo fica mais claro. É como se o personagem mitológico “pirata” sempre tivesse tudo o que precisaria para ser considerado uma codificação queer e ninguém nunca tinha reparado. Mulheres proibidas nos navios porque atrai má sorte? Sei…
O mais interessante é que a sexualidade dos personagens, quando revelada como não-heteronormativa, nunca é um motivo de discussão dentro da trama. Pode até ser uma surpresa para o público e algo que gere rebuliço aqui no mundo real (como gerou essa coluna) mas é tratado com total naturalidade dentro da narrativa. Considerando que é uma história situada lá pros anos de 1700, dá pra dizer que essa abordagem não é tão realista mas veja bem, falamos de ficção: se a gente permite o George R. R. Martin escrever sobre a era medieval imaginando que existiam dragões, podemos permitir que David Jenkins escreva piratas gays cuja história não se resuma à lidar com homofobia. O roteiro toma a liberdade de encarar a descoberta de um amor por alguém mesmo gênero como algo libertador,e isso é lindo.
Também impressiona como os personagens foram construidos com a masculinidade tóxica em sua raiz (como a pressão paternal que ambos Ed e Stede sofrem nos flashbacks de suas infâncias) e ao mesmo tempo possuem uma maturidade emocional invejável em diversas relações. Há uma cena em que Izzy Hands (interpretado por Con O’Neill) ameaça contar para Black Pete (Matthew Matter) que seu parceiro Lucius (Nathan Foad) teve relações com outras pessoas. Ao invés da reação raivosa e ciumenta que Izzy esperava, Black Pete responde:
Nós não somos donos uns dos outros.
E não pense que a ESSÊNCIA dos piratas foi abandonada. O personagem “pirata” é muitas vezes interessante para a mídia somente como uma criatura selvagem, beberrona, violenta e sem escrúpulos – e isso tudo está presente na tripulação do Revenge, tanto como parte do desenvolvimento de alguns dos personagens quanto como um traço da masculinidade tóxica presente neles. Afinal de contas, não é sobre ser hétero, é sobre ser homem. E esse não é o único elemento no qual a série se mostra consciente de questões de gênero.
Há o personagem Jim, interpretado por Vico Ortiz, ator e drag queen que se identifica como pessoa não-binária. Jim usa um nariz e um bigode falso, além de roupas largas, para esconder de seus colegas de tripulação que ele não é um homem como eles. Porém, quando o disfarce é revelado, ele pede que continue sendo chamado de Jim por todos, independente de ser ou não um homem cisgênero. Há também uma relação romântica desenvolvida entre Jim e o personagem Oluwande (Samson Kayo) e é surpreendente (positivamente) que essa relação não seja afetada em nada pela identidade de gênero de Jim. É uma série de boas surpresas, todos os dez episódios.
Então claro que foi uma coincidência que a segunda temporada de Nossa Bandeira É a Morte tenha sido anunciada assim que entramos no chamado Mês do Orgulho – mas o mês de junho não é a única relação entre as duas temáticas.
Nossa Bandeira é a Morte, além de um entretenimento delicioso e bem feito, faz na televisão algo que pode lembrar o que foi a revolta de Stonewall. Lutar para que pessoas LGBTQIA+, e fazemos questão de não deixar nenhuma letra de fora, possam ocupar todos os espaços (na terra ou no mar) com a maior naturalidade possível.