Colunas 4 maio, 2022
por Raphael Guimarães

Doutor Estranho No Multiverso da Loucura: A fórmula Marvel nas mãos de um profissional

Mais um filme-evento chega aos cinemas. Estamos tendo muitos desses ultimamente – filmes que, sim, contam uma história com começo, meio e fim, mas que também estão ali recheados de momentos feitos para arrancar gritos e palmas do público. Tivemos Vingadores – Ultimato, que finalizou a Saga do Infinito construída ao longo de onze anos. […]

 

Mais um filme-evento chega aos cinemas.

Estamos tendo muitos desses ultimamente – filmes que, sim, contam uma história com começo, meio e fim, mas que também estão ali recheados de momentos feitos para arrancar gritos e palmas do público.

Tivemos Vingadores – Ultimato, que finalizou a Saga do Infinito construída ao longo de onze anos. Depois, Homem-Aranha: Sem Volta Pra Casa reuniu todos os atores que interpretaram o cabeça-de-teia em um tributo ao legado do personagem nos cinemas. E agora o tão esperado Doutor Estranho no Multiverso da Loucura vem prometendo, desde seus trailers, uma cacetada de participações especiais que fazem nerds pularem na cadeira e as views do seu youtuber favorito triplicarem.

Mas o que é que esse filme-evento está comemorando? Posso ser pessimista e dizer que é uma ode ao monopólio Disney e a todos os personagens que agora eles podem usar sem medo de processo. Ou posso ser menos amargo e dizer que é uma comemoração dos vinte anos de Homem-Aranha, o filme de 2002 dirigido por Sam Raimi. Junto de X-Men e Blade – O Caçador de Vampiros, o Aranha de Sam Raimi foi uma das peças fundamentais para que a tendência de filmes de super-heróis se tornasse o sucesso que é hoje – o que é quase irônico, já que a criatividade, o autorismo e a ousadia temática que são esbanjadas no Homem-Aranha de 2002 são os elementos que mais sinto falta na maioria dos filmes da Marvel, que são feitos de maneira formulaica e industrial. Divertidos, bem-humorados e empolgantes mas ainda formulaicos e industriais.

Reprodução: Marvel Studios

Nenhum desses comentários é novo, a Disney já cansou de escutar isso tudo e talvez seja por isso que, duas décadas depois, chamaram Sam Raimi para voltar aos filmes de heróis, como uma tentativa de injetar na franquia a alma que tanta gente sente falta.

 A pergunta que fica é:  Sam Raimi conseguiu? E a resposta é: sim. Mas ele também não faz milagre.

Em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, o mago Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) acompanha e protege a adolescente América Chavez (Xochitl Gomez) que possui o dom de viajar entre diferentes universos e está sendo perseguida por uma poderosa entidade que busca se apossar de seu poder. A dupla Strange e Chavez reproduz o arquétipo de “mentor e aprendiz” já muito explorado no cinema (inclusive no cinema de herói, em Logan) mas que nunca perde o apelo, transformando a interação dos personagens em uma constante briga do novo contra o velho que desenvolve lentamente as duas figuras justamente pelos dois serem tão parecidos. Ela é teimosa por ser uma adolescente imatura e de personalidade forte enquanto ele é arrogante por ser um mago experiente que acredita saber mais que todo mundo e acha que, como mencionado algumas vezes durante o filme, sempre deve ser aquele “segurando a faca”.

Reprodução: Marvel Studios

Somado aos protagonistas está também Wanda Maximoff, a Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen) que busca, há cinco filmes e uma série, a oportunidade de brilhar no universo Marvel e aqui finalmente encontra. O desenvolvimento da personagem ocupa bastante espaço no filme a ponto de, por vezes, ficarmos em dúvida se é um filme dela ou do Strange. Isso não chega a ser um problema pois a estrutura que é seguida em seu arco é a mesma para o mago e para America, uma única mensagem que é repetida ao longo de toda a aventura em diferentes intensidades até que no terceiro ato atinge o seu pico e se transforma em uma lição para cada indivíduo do trio protagonista. Para quem identifica a estrutura, pode se tornar repetitivo e irritante, mas para quem se permite ser envolvido pela relutância dos personagens, não passa de uma redundância que se converte em tensão até que tudo exploda – e quando explode é gostoso demais de assistir.

A própria Wanda, marcada pelas perdas e traumas que sofreu nos últimos anos, transforma suas feridas internas em representações visuais da dor, do luto, do medo e da raiva, trazendo ao filme as camadas de horror que Sam Raimi prometeu em entrevistas. Uma das preocupações do público era que a Disney não permitisse ao diretor aplicar suas inspirações em cinema de terror nesse que deveria ser um filme para toda a família, mas foram preocupações em vão pois, felizmente e para o bem de nossos pesadelos, tem terror do começo ao fim. Seja no gore dos monstros cósmicos, na bruxaria tenebrosa de perseguição ou até nos sustos guiados por aparições repentinas e trilha paranóica (um presente do compositor Danny Elfman), Raimi não se esquece de que começou a carreira com A Morte do Demônio

Ainda bem que o cineasta também não se esqueceu de que era, acima de tudo, um filme de super-herói na hora de construir a sua versão de Doutor Estranho. Parece ser o básico, mas colocar o protagonista preocupado em salvar vidas enquanto derrota inimigos é uma regra fundamental do heroísmo que por vezes o estúdio deixa de lado.

Reprodução: Marvel Studios

Por falar em regras, Raimi fez a lição de casa ao entender todas as limitações da fórmula Marvel para se aproveitar delas, encontrando brechas que o permitiram arrepiar o público enquanto construía o clima único que o filme tem. O estúdio proíbe grandes consequências? Pois o diretor usa o conceito de multiverso a seu favor e causa choque dentro dele, evitando as temidas consequências. O estúdio diz que participações especiais são obrigatórias? Não seja por isso, o diretor as concentra em um único núcleo, aumentando a euforia de um pedaço específico da obra e enriquecendo a sensação de desespero do protagonista que, repentinamente, se encontra em meio a vários personagens que não conhece.

Há quem espere que Doutor Estranho no Multiverso da Loucura seja uma renúncia ao sistema Marvel de contar histórias. Essas pessoas vão se decepcionar. O que se deve esperar do filme é uma revisita a esse sistema pelo homem que, intencionalmente ou não, ajudou a construí-lo e agora tenta, com toda a força que Hollywood permite, enriquecê-lo.