Banner 17 dezembro, 2024
por Redação PerifaCon

“Baby”: Uma imersão sensível guiada por possibilidades e fragilidades cotidianas

Em um centro de São Paulo pulsante, a relação de duas pessoas LGBTQIA+ de gerações e contextos diferentes ganha contornos de afeto, prioridades e a busca por estruturação

 

texto por: Mike Faria da Cruz

Uma orquestra parece anunciar tudo que vamos viver nas próximas 1h45min de filme. É o começo de uma nova fase para uma pessoa jovem LGBTQIA+, na saída da Fundação CASA, com sede de encontrar a sua família, especialmente sua mãe, e viver as próprias experiências. Estou falando de Wellington (João Pedro Mariano), personagem principal que conduz a trama de encontros, reencontros e mergulhos dentro de si e de outras pessoas também que marcam seu caminho.

O ponto de partida para o protagonismo e certa autonomia de Wellington – sobretudo no campo relacional – se dá quando ele vai a um cinema pornô e conhece Ronaldo (Ricardo Teodoro) no corredor, em meio a outras pessoas, aparentemente homens gays ou bissexuais, que disputam corpos, toques, e tem nos segundos das trocas de olhares a oportunidade para atrair quem por ali passa. Ronaldo é um homem mais velho que apresenta ao jovem novas maneiras de se sustentar, nos corres da vida e dos sentimentos que baseiam os closes, principalmente na casa de Ronaldo, onde passam a viver inicialmente.

Nesse cenário, os dois desenvolvem uma relação próxima, servem de apoio um ao outro e é nesse meio que Wellington assume a identidade de “Baby”, em um ato de confiança e firmeza inesperado para quem olha para o jovem iniciante no universo “erótico”. É interessante como a condução dos fatos deixa espaço para a vulnerabilidade das personagens, em meio a situações caóticas, relações misteriosas e necessidades – de desenvolvimento e aproximação – que parecem gritar em meio aos diálogos. É também a estruturação de uma família muito comum a pessoas da comunidade LGBTQIA+: aquela que escolhemos e nos acolhe por meio do reconhecimento de quem somos e a identificação do que ainda podemos ser. 

Acredito que o filme vai dialogar de formas diferentes a depender da bagagem de cada pessoa que for ver, e isso é muito empolgante. Como ele é ambientado no centrão de São Paulo, tem um ritmo, sociabilidade e cenários reais que quem frequenta ou mora por ali vai identificar muito e pode até lembrar das próprias vivências. O que pode ser diferente com pessoas de outras regiões de SP ou de outros estados. Eu, por exemplo, pessoa mineira, consegui identificar alguns lugares, mas em alguns momentos do longa assisti como quem experimenta aquilo pela primeira vez através da tela, pela turma de amizades de “Baby”, através da ex-companheira e o filho de Ronaldo, e por aí vai.

É como se a cidade de locação do filme assumisse o papel de mais uma personagem, com nuances, expressões e um jeito único de agregar para o filme. Além disso, é estimulante ver Ricardo Teodoro, com todas as suas características, em um papel sensível e cheio de camadas.

Em uma entrevista para a CNN Brasil, em outubro de 2024, ele mesmo destacou: “Eu sou um homem negro, de um metro e noventa. Então, naturalmente, o que chegava para mim sobre papel era o policial, ou o estigma do bandido para fazer e tal”, pontua. “Não me enxergavam.” […] “Eu acho que a grande questão desse filme é a oportunidade que o Marcelo (diretor) me deu de poder mostrar outras facetas do audiovisual até então.” […]

História multifacetada

Sensível, realista, imersivo e transparente. Esses são os adjetivos que para mim guiam a narrativa de “Baby” e suas personagens construídas de forma complexa, assim como a vida é. A direção cuidadosa e o elenco formado por pessoas com experiências plurais, como Bruna Linzmeyer (“A Força do Querer”), Luiz Bertazzo (“Ainda Estou Aqui”) e Ana Flavia Cavalcanti (“Os Outros”) dão o tom cru àquelas relações que são vinculadas a Wellington, mas que poderia ser de qualquer uma de nós – salvas as questões específicas de momentos e contextos de vida, claro.   

Em alguns instantes do longa, me pareceu até um documentário que narra a história de pessoas dissidentes – que divergem e/ou que saem de um determinado grupo ou organização (política, religiosa, por exemplo), por não se identificar com seus princípios, ideias, doutrinas, métodos etc – em espaços urbanos formados por diversas experiências simultâneas ativas, com prioridades que se movimentam a todo o momento e modificam sentimentos, relações e o desenvolvimento das pessoas envolvidas. 

A história pareceu terminar, a meu ver, com “Baby” mais Wellington, isto é, mais maduro, dono das próprias vontades, desejos e com maior proximidade de ser protagonista da própria trajetória – pessoal e profissional. É simbólico esse momento se dar em um meio de transporte, com rotas alteradas, na vida ao vivo sem roteiro, mas isso você vai ter que descobrir vendo o filme. 

No fim, é muito interessante ver uma proposta real na tela grande de cinema, com vivências de pessoas LGBTQIA+ que trabalham, amam, se divertem, passam por perrengues, enfim, pessoas LGBTQIA+ como nós – que vivem, se surpreendem com a vida e mostram que, em meio a closes e corres, somos prósperas e sinônimo de talento e excelência. 

Dirigido por Marcelo Caetano, mesmo realizador de “Corpo Elétrico”, “Baby” é um filme para olhares expandidos, então se você está limitado em vieses e estereótipos, é melhor rever seus conceitos antes de entrar na sala de cinema. Até porque depois de sair dela você certamente vai fazer esse exercício também.