por Redação PerifaCon
American Fiction e a sofisticação do racismo
American Fiction, dirigido por Cord Jefferson e estrelado por Jeffrey Wright, vem com uma história cativante e com atuações poderosas
Por: Marcos Vellasco
O filme segue a vida de Thelonius ‘Monk’ Elison, um escritor e professor universitário que há muito tempo não consegue publicar seus romances, pois se recusa a se curvar às demandas do mercado editorial que exige de escritores negros apenas obras sobre seu sofrimento e suas dificuldades.
A carreira de Thelonius está arriscada e em meio às frustrações profissionais, ele ainda enfrenta problemas sérios em sua família com distanciamento, adoecimento da mãe e algumas dívidas. Em meio a essas questões, ele escreve um romance que cumpre todas as “exigências” do mercado como uma piada para que fosse exposta à forma com a qual são vistos artistas pretos. Mas o que era para ser uma denúncia acaba se tornando um grande sucesso.
Baseado no romance “Erasure” de Percival Everett, American Fiction extrapola os clichês de histórias que tanto vimos com o passar dos anos sobre a comunidade preta. Escancara toda a exploração de nossas dificuldades, nossas lutas e sofrimentos e joga tudo isso na cara da indústria para que ela se deleite com mais um banho do sangue de pessoas pretas, marginalizadas, e excluídas da sociedade.
A revolta de Monk vem de sua percepção do mercado e de como esta indústria pode encaixotar artistas brilhantes e fazer tudo para que eles tenham sucesso somente em um espaço delimitado. Nada de querer levantar voô em outras áreas, não! Você tem seu lugar, se contente com isso.
O professor e antropólogo Kabengele Munanga disse uma vez que “O racismo é o crime perfeito”, por ser maquiado de subjetividades e travestido pelo mito da democracia racial. E isso se vê em todo o filme, o racismo em sua forma mais sofisticada, a forma que não diz, mas grita, a forma que não barra o acesso, mas não te deixa ficar. Sofisticação!
A fotografia do filme também nos conta uma história, a câmera às vezes tremula para demonstrar a raiva pulsando dentro de Monk, seus planos abertos que nos transportam para dentro dos pensamentos dos personagens e nos convidam pra dentro daquela atmosfera tão reflexiva e intensa. Apenas uma vez tive a sensação de que uma cena poderia ter sido mais longa, já que se tratava de um momento de introspecção, pois ela foi cortada de maneira rápida e quebrou um pouco minha imersão, mas logo depois fui absorvido pelo filme novamente.
A trilha sonora, assinada por Laura Karpman, traz muito jazz e uma atmosfera aconchegante e visceral em alguns momentos. É muito fácil se ver imerso nas cenas e nos ambientes por conta da música que está tocando, não à toa a compositora está concorrendo ao Oscar na categoria de melhor trilha sonora original.
Cord Jefferson faz uma direção muito sólida em sua estreia nas grandes telas. O diretor que tem larga experiência com séries de TV, como escritor, editor e até mesmo produtor, chega com o pé na porta e traz uma história digna de todas as premiações que participou e venceu.
Ao final do filme entendi o porquê alguns se incomodaram tanto. A obra expõe o quanto a indústria pode ser cruel, por querer nossos corpos e nosso sofrimento. As pessoas se sentem culpadas por duas horas e vão para suas casas, com a sensação de dever cumprido.
Não nego haver, sim, histórias de dor que precisam ser contadas, mas não podemos reduzir a isso. Para além das dores, existem amores, saberes, risadas, abraços. A história mostra o conflito no qual as pessoas negras são constantemente inseridas, precisando cumprir as exigências do mercado para sobreviver. A indústria joga com o sonho, com a vida das pessoas. “Transforma um preto tipo ‘A’ num neguinho”.
O filme nos mostra também que há a necessidade de se criar uma nova indústria, diferente em pensamento e filosofia, para que, no futuro, não se brinque mais com vidas e sonhos, numa realidade que não se finja se importar quando, na verdade, o lucro é o objetivo final. Talvez essa seja a verdadeira ficção americana.
O longa está disponível na amazon prime video