Banner 22 setembro, 2022
por Thaís Hern

A Mulher Rei: Representatividade com alguns espinhos na coroa

Quando o protagonismo negro encontra batalhas dentro e fora de tela. Em 2018 o mundo foi arrebatado pelo sucesso de Pantera Negra que nos apresentou algumas imagens raras no audiovisual, como um país africano (ainda que fictício) rico e poderoso. Porém, eu lembro da reação do público as Dora Milajes em uma sessão composta apenas […]

 

Quando o protagonismo negro encontra batalhas dentro e fora de tela.

Em 2018 o mundo foi arrebatado pelo sucesso de Pantera Negra que nos apresentou algumas imagens raras no audiovisual, como um país africano (ainda que fictício) rico e poderoso. Porém, eu lembro da reação do público as Dora Milajes em uma sessão composta apenas por espectadores negros.

Havia um clima de orgulho e a cada cena em que apareciam, aquelas personagens lideradas por Okoye (Danai Gurira) eram ovacionadas, tal qual uma torcida que acompanha o seu time do coração. É fácil entender o porquê. Nós, pessoas negras em geral, mas em especial as mulheres, não encontramos com frequência figuras para nos espelharmos na cultura pop. Estamos quase sempre relegadas e enquadradas a estereótipos raciais em diversas mídias, inclusive no cinema.

Mas a indústria do cinema não é boba. E Pantera Negra escancarou a demanda por narrativas que nos coloque em primeiro plano e que preferencialmente represente as nossas vozes, não só com atores negros na tela, mas com profissionais negros por trás da tela também. É dessa necessidade (agora também financeira) que nasceram algumas das produções mais interessantes do cinema atual e isso inclui o tão aguardado A Mulher Rei.

Com elenco majestoso, incluindo Viola Davis, Lashana Lynch e John Boyega, rostos não tão conhecidos, mas igualmente talentosos como Thuso Mbedu (The Underground Railroad) e Sheila Atim (Doutor Estranho), além da espetacular diretora Gina Price-Bythewood (The Old Guard), a produção mistura tudo aquilo que gostamos de ver num filme de ação. Tem coreografia de luta incríveis, batalhas épicas, um pouco de romance, um pouco de humor e até um pouco de drama. A diversão é garantida para quem curte o gênero “drama de ação histórico”, como a própria Viola Davis o definiu em coletiva de imprensa no Brasil.

Infelizmente, nem tudo são flores em A Mulher Rei e alguns espinhos são difíceis de ignorar, por mais que eu tenha tentando.

Como mulher negra e roteirista, eu relutei muito em escrever minha crítica, decidindo ser o mais honesta possível, ainda que isso signifique nadar contra a maré de elogios (e passadas de pano) que a produção tem recebido. Minha decisão vem de uma frase que aprendi durante os anos de estudo e passou a se tornar meu mantra: Roteiro é intenção.
E por ser intenção, roteiro é também responsabilidade com a mensagem que você decide compartilhar com o mundo. Isso também significa não usar a régua do opressor para determinar a linha de responsabilidade que possuímos como criadores, como artistas.

Preciso também deixar claro que normalmente eu não cobro exatidão histórica (esse nem é o caso)  e tendo a defender a liberdade artística em prol de uma narrativa que alcance o público. O cinema na maioria das vezes não precisa ter o compromisso com a verdade, não se trata de um livro de história. Por isso, a realidade ocasionalmente é floreada para que se torne palatável ou narrativamente interessante.

Isso acontece em A Mulher Rei quando o Reino de Daomé, historicamente conhecido como protagonista no comércio de escravizados, ganha nas telas o papel de principal empecilho para que os Europeus escravizem o povo africano. Uma fantasia distante da realidade, mas que funciona para que tenhamos as guerreiras agojies como protagonistas e heroínas nesse recorte histórico que a produção escolheu realizar.

Reprodução: Divulgação/Sony Pictures

A mesma alteração da realidade ocorre com o principal antagonista do filme: o general Oba (Jimmy Odukoya). A partir desse trecho há tantos pontos que me levantam no mínimo questionamentos que chega a ser difícil enumerá-los. Mas vamos lá:

1. Oba é o nome de uma orixá guerreira e batiza um personagem sem qualquer respeito pelas mulheres. Um estuprador. Um pouco de pesquisa evitaria certo desconforto;

2. O personagem é general do Império de Oyó, uma nação Iorubá formada por Nigéria e Benim (Daomé). Ainda assim, ele olha com desprezo para uma boneca que representa um orixá e cobre o corpo de uma falecida agojie, reconhecendo suas inimigas por esse detalhe e não porque aquilo de alguma forma faz parte das tradições religiosas compartilhadas por ambos os povos;

3. O figurino de Oba e seus companheiros do exército de Oyó, lembra os povos da região sahariana do norte da África, como os tuaregues. Esses povos em sua maioria são muçulmanos, ou seja, geograficamente e culturalmente distantes do Império citado;

Mas tudo bem! Você chegou até aqui lembrando que o ponto principal desse texto não é cobrar precisão histórica, certo? Você disse a si mesmo que consegue sobreviver a suposta incongruência, a desconfiança de islamofobia e jogar tudo no balde depois que o pano for passado, ainda que reconheça a fixação de Hollywood por demonizar pessoas racializadas.

Contudo, se não bastasse todos os pontos anteriores, o personagem é daqueles vilões completamente unidimensionais, sem qualquer profundidade, malvadão até o casco. Num filme que escolhe um recorte especialmente doloroso da história, que escolhe contar os conflitos entre negros africanos comercializando seus iguais, o principal vilão é um homem negro que não demonstra qualquer aprendizado no decorrer da hisória. Que se mantém violento e impiedoso do início ao seu próprio fim, destilando ódio e desprezo principalmente contra mulheres negras.

E isso ocorre, enquanto temos a disposição o frágil e insosso Santo Ferreira (Hero Fiennes Tiffin), um português escravagista, ainda jovem, aprendendo a lidar com os negócios deixados pelo pai… e que indefeso é assassinado por um grupo de fortes homens negros recém libertos, numa cena que eu tenho certeza que a roteirista sentiu orgulho de escrever, mas que me doeu olhos porque há tantas maneiras de passar uma mesma mensagem, ainda que essa mensagem seja uma justa vingança.  

Novamente, roteiro é intenção. E as intenções por trás de A Mulher Rei me parecem meio turvas, possivelmente inebriadas pelas dificuldades de realizar uma produção com protagonismo negro dentro e fora da tela. Em uma indústria comandada e financiada pelas mesmas figuras desde sua origem, eu imagino o quanto de sapo foi necessário engolir para torná-lo possível e grandioso como ele realmente é, além das possíveis interferências de executivos e estúdios.

Por entender na pele as barreiras que enfrentamos para fazer cinema na posição social em que nos encontramos que eu também não consigo deixar de questionar aquilo que me incomoda em nome de uma tal representatividade que por algum motivo não se permite questionar a própria superficialidade em tempos como esses, em que vivenciamos uma batalha narrativa midiática que tem custado a vida de muitos de nós. 

Entender a importância de A Mulher Rei dentro de uma indústria que invisibiliza mulheres negras, defender que a produção exista e torcer para que floresça em novas produções igualmente diversas, não pode ser o mesmo que ignorar seus espinhos e analisá-los de forma madura. Caso contrário, essa representatividade serve para que?