Banner 2 junho, 2023
por Redação PerifaCon

2ª temporada de ‘Bel-Air’ é um espelho da comunidade e da luta negra contemporânea

A nova temporada já está disponível no Star+.

 

Zeitgeist. Palavra da língua alemã que significa “o espírito do tempo”. Ela diz respeito a algo, ou alguém, que é um espelho perfeito do período em que vive. Esse termo descreve muito bem a segunda temporada de Bel-Air, que estreou no dia 31 de maio no Star+. 

Se você caiu aqui de paraquedas, e não sabe do que se trata, a série é uma nova versão de “Um Maluco no Pedaço“, um programa de comédia muito popular nos anos 90, que ganhou o público brasileiro. Tanto na série original, quanto em sua nova adaptação, acompanhamos a história de Will, um jovem negro, astro do basquete, que se muda de sua casa na Filadélfia, onde é criado sozinho por sua mãe, para a casa de seus tios ricos em Bel-Air, na Califórnia, para fugir de um conflito de gangues em que se envolveu. Will tem, então, que se adaptar ao estilo de vida da elite da Califórnia, sem se perder no processo.

O drama Bel-Air reconta a comédia, dando espaço para que os temas mais pesados apresentados na sitcom, sejam abordados com mais profundidade. Se você ainda não assistiu todos os episódios, fica esperto, que o texto pode conter alguns spoilers.

A nova temporada traz uma boa continuação da história dos personagens apresentada na primeira, dando a eles desenvolvimento psicológico e de suas relações, assim como  aprofundamento de suas tramas, por meio de um roteiro verossímil e coeso, não perdendo para última em qualidade. Além disso, outro ponto alto da temporada é seu mergulho profundo nos temas ligados à luta antirracista e à história, e cultura, negra estadunidense, que sempre estiveram muito presentes, tanto na obra original, quanto em sua última temporada. 

A abordagem de Bel-Air às questões raciais é bem atual, representado problemas, e debates contemporâneos da população preta. Não por acaso, um dos primeiros temas apresentados nessa segunda temporada, são os conflitos sociais gerados pela exclusão, e apagamento, da história dos negros nos currículos escolares estadunidenses, questão que tem movimentado o debate político nos Estados Unidos. São citados, inclusive, livros de autores negros que tratam das histórias da população negra que não são, normalmente, contadas nas escolas dos EUA, como: “The Revolution Has Come: Black Power, Gender and The Black Panther Party in Oakland” ( A Revolução Chegou: Black Power, Gênero e o Partido dos Panteras Negras em Oakland) d Robyn Spencer, e “I’m Still Here: Black Dignity in a World made for Whiteness” (Ainda Estou Aqui: Dignidade Negra em um mundo feito para a Branquitude) de Austin Channing Brown. A série também faz menção a Phyllis Wheatley, primeira poetisa negra a ser publicada nos Estados Unidos, a James Baldwin e até a 92ª divisão da infantaria estadunidense, batalhão  formado apenas por negros que combateram na Primeira e na Segunda Guerra Mundial. Ao longo dos episódios, também acompanhamos os personagens lidando com questões como saúde mental, abandono parental e dependência química. 

A questão da ascensão social das pessoas negras, e suas implicações, continuam atravessando a série, que representa muito bem como essa ascensão, quase sempre, implica em um embranquecimento, uma vez que as camadas mais altas da sociedade – que continuam sendo brancas – coagem – às vezes silenciosamente – os negros, que alcançam esses locais, a se adaptarem ao seu modus operandi, sob o risco de perderem tudo o que trabalharam tanto para conquistar. Isso resulta numa aparente desradicalização, e tolerância com situações que negros, que não ocupam esses espaços, não teriam.

Esse conflito entre os negros que estão na base da sociedade – mais próximos de suas raízes, cultura, mas também mais distantes de oportunidades de ascensão, e dos espaços de poder – e os negros que ascenderam socialmente – enxergados muitas vezes como “vendidos” – é muito bem representado pelos desentendimentos entre os personagens Will e Carlton.

Nessa temporada, o conflito entre os dois se dá por uma divergência sobre qual seria o melhor caminho para responder a casos de racismo, e observamos os personagens se dividirem entre uma opção mais diplomática e conciliadora – representada por Carlton – e uma mais radical – representada por Will.

Mas, Will acaba experimentando um pouco do que é estar na pele de seu primo, e entenderá o alto custo de agir mais contundentemente contra o racismo, quando se faz parte da elite social. Como Vivian Banks deixa claro para seu sobrinho “Você fez certo Will, mas agora vai ter de lidar com as consequências”. Ser mais radical é um luxo que muitos negros que ocupam esses espaços não sentem que podem se dar.

Ao mesmo tempo, acompanhamos o quanto o racismo, comum a esses espaços da elite – e a sociedade em geral – e até mesmo as pressões ligadas a ativismo, adoecem mentalmente as pessoas negras. A série mostra os personagens chegando a conclusão que o silêncio, e a complacência, com as estruturas racistas da sociedade também não são uma resposta viável ao racismo. Também vemos retratada a diversidade de pensamentos e posicionamentos dentro da comunidade e do ativismo negro, e como os caminhos necessários para se produzir uma ação coesa, e contundente, passam, muitas vezes, pelo diálogo e por cessões entre partes dissonantes do movimento.

Vemos, também, através da trajetória de Ashley, as frustrações e decepções ligadas à luta antirracista. Afinal, sendo o mundo um lugar “feito para branquitude” (como bem diz o livro de Austin Channing Brown que Ashley recebe de presente de sua professora), sabemos que muitas batalhas serão perdidas. A personagem tentar aprender, assim como muitos negros na realidade, a não se deixar desmotivar pela injustiça em seu engajamento com a luta antirracista.

Além das temáticas retratadas na série, os personagens, seu desenvolvimento emocional e de suas relações também são um ponto alto da trama, por serem, a meu ver, muito coesos. Nessa temporada vemos o aprofundamento de muitos deles. Conhecemos um pouco mais da história de Geoffrey e de Jazz, e sua família, e acompanhamos os desdobramentos dos acontecimentos da primeira temporada para Will, Carlton, Phil e Vivian.

A trajetória de Will segue sendo sobre conquistar a independência, alcançar seus sonhos, lutar pelo acredita e se tornar um homem honrado. Dessa vez, Will terá de lidar com as dificuldades de se admitir quando está errado, encarar seus próprios sentimentos e com as decepções geradas, tanto por uma sociedade racista, quanto por ter ídolos e referências que, não necessariamente, serão aquilo que ele espera. Sua relação com tio Phill apresenta relações possíveis de paternidade negra, e traz uma tônica muito interessante, ao passo que Phill tenta demonstrar para Will que pessoas negras não precisarem se envergonhar de precisar de ajuda, ou de terem recebido ajuda para chegarem onde querem chegar, ou onde já estão. Em contrapartida, Phill também aprende que suas intervenções podem ser invasivas, e passa a respeitar os limites de Will, e ajudar apenas quando é requisitado.

A relação entre Phill e Will, e Phill e Carlton, parece estar alinhada com as discussões recentes sobre masculinidades negras. Os personagens negros da trama não tem medo de demonstrar seus sentimentos, de dizer que se amam mutualmente, e se permitirem serem frágeis, ou chorar, quando precisam. Ao mesmo tempo, também não deixam de se colocar enquanto figuras fortes dentro de seus respectivos contextos, passando uma ótima mensagem que sentir seus próprios sentimentos não te torna menos homem, ou mais fraco.

Carlton, um personagem que traz consigo muitas complexidades – representando pessoas negras que cresceram em espaços muito embranquecidos e desenvolvem uma conduta problemática para se manter vivo – acaba adoecendo por conta das pressões desse ambiente. Nessa temporada, o vemos tentando seguir por um caminho diferente, mas ainda sem conseguir se desatrelar completamente de antigos comportamentos, e sendo julgado por erros do passado. Ao mesmo tempo, ele também tem que lidar com recaídas de hábitos que lhe são nocivos.

Phill retorna para o seu escritório de advocacia, que tinha abandonado para concorrer a uma vaga no judiciário, e tenta reerguer sua firma do péssimo estado que a empresa ficou durante sua ausência. Também vemos o personagem gerenciando suas relações com Geoffrey, sua esposa Vivian, sua mãe e irmão, assim como com os problemas de Will e Carlton.

Enquanto isso, Vivian segue sua jornada para encontrar sua voz como artista. Uma vez que a personagem está acostumada a silenciar-se e praticar a abnegação, devido ao seu posto como mãe e esposa, sua trama envolve aprender a se priorizar, e se posicionar, ao mesmo tempo que tenta equilibrar a carreira com a devoção por sua família.

O ponto fraco da temporada é o enredo de Hillary, que segue como a menos engajante da série. Os pontos altos da personagem são quando se encontra com seu interesse amoroso, Jazz. As interações do casal rendem bons momentos cômicos e românticos.

Essa temporada conta com algumas participações especiais como Tatyana Ali e Daphne Maxwell Reid – respectivamente, Ashley e Tia Vivian de “Um Maluco no Pedaço” – e a rapper estadunidense Saweetie.

A segunda temporada de Bel-Air não só não perde em qualidade para primeira, como apresenta uma continuação plausível e satisfatória dos enredos de cada personagem. Ela também é um reflexo do avanço dos debates da comunidade negra, e de seu estado atual. Se você tá ligado nesses assuntos, com certeza vai gostar da abordagem sensível dada a eles. Se você não manja nada disso, é uma ótima oportunidade de ser introduzido a esses temas e discussões de maneira leve, assistindo a uma produção que tem tudo para se tornar, assim com seu material de origem, em um clássico contemporâneo.


Texto por Manuel Netto. Siga o colunista nas redes sociais