Banner 30 agosto, 2022
por Raphael Guimarães

Como o Tio Patinhas se tornou um ícone do funk

A trajetória do pato mais rico do mundo até se tornar um dos personagens emblemáticos da periferia “De moedinha em moedinha, vou ficar tipo Tio Patinhas. Quem não acreditou vai viver pra prestigiar. De moedinha em moedinha, vou ficar tipo Tio Patinhas. Mansão, carrão, vocês podem me aguardar.” Esse é um trecho da música Tipo […]

 

A trajetória do pato mais rico do mundo até se tornar um dos personagens emblemáticos da periferia

“De moedinha em moedinha, vou ficar tipo Tio Patinhas. Quem não acreditou vai viver pra prestigiar. De moedinha em moedinha, vou ficar tipo Tio Patinhas. Mansão, carrão, vocês podem me aguardar.”

Esse é um trecho da música Tipo Tio Patinhas, que foi lançada em 2015 como um single pelo MC Menor da VG, um dos MCs que ajudaram a popularizar o gênero funk em São Paulo, junto a outros MCs de renome como Livinho e Pedrinho, com quem gravou diversos feats. No refrão, o artista usa o personagem do Tio Patinhas como um referencial de meta a se alcançar, um nível que ele almeja chegar, especialmente em questões financeiras e de bens materiais. E não é um caso isolado: dentro da estética periférica (especialmente no funk mas também presente nos estilos do rap e trap), o pato antropomórfico do universo Disney é citado com frequência. No site Genius, uma plataforma originalmente dedicada a hospedar letras e anotações a respeito de composições de hip-hop mas que logo passou a abraçar outros gêneros musicais, o termo Tio Patinhas aparece nas letras de 77 músicas não infantis. 

 Além das composições, o funk permite que o personagem apareça em diversos outros elementos que compõem a cultura, como bonés, camisetas, shorts, cordões de ouro, tatuagens e até mesmo servir de mascote para canais que publicam coletâneas e sets de bailes. 

Mas por que? Com tantos personagens por aí, o que fez com que justamente esse fosse adotado como o queridinho da cultura funkeira?

Quem é Tio Patinhas?

Embora você talvez se lembre do personagem por suas participações em desenhos animados da Disney (como nos especiais de Natal do Mickey ou protagonizando as duas versões da série Ducktales – Os Caçadores de Aventuras), a origem do pato mais rico do mundo não se deu nas mãos de Walt Disney como seus colegas Donald, Pateta e Pluto, mas sim nas histórias em quadrinhos. Criado pelo genial ilustrador e roteirista Carl Barks (que morreu em agosto de 2000 aos 99 anos), Patinhas teve sua estreia nos gibis Disney em 1947. Inicialmente surgindo como uma figura rica, ranzinza e meio vilanesca (para contrastar com o Pato Donald, seu sobrinho pobre, simpático e heróico) o personagem foi aos poucos se transformando num sujeito amigável e carismático e que servia para ensinar conceitos básicos de economia e trabalho duro até o sucesso (a tal da meritocracia) para as crianças, abordando até assuntos como a inflação.

A característica mais marcante de Patinhas, entretanto, não é sua didática mas sim o seu patrimônio gigantesco. O que a princípio era um fator para diferenciá-lo de Donald, a riqueza e ganância do personagem acabou se tornando um gancho que causava e possibilitava as aventuras dos patos Disney que, muitas vezes de graça, visavam aumentar a fortuna de seu velho e quaquilionário tio. Nunca lhe faltam duas coisas: dinheiro e vontade de ganhar dinheiro.

 Está aí o apelo, o objeto de desejo que tantos enxergam em Patinhas. Sua caixa-forte é gigantesca e lotada de ouro, em uma quantidade que o permite nadar de braçada por entre suas centenas de milhares de moedas. Faz sentido que uma juventude periférica queira a mesma vida que o pato mais rico do mundo. É como cantou MC Havi em seu maior sucesso, Tio Patinhas:

Hoje o dinheiro só tá aumentando multiplicando lá na conta. Bolso agora parece um cardume. Que nem parece que dá conta. Tô investindo até em bitcoins. Pra me livrar do imposto. Tô parecendo o tio patinhas. Agora nadando em ouro.

A Filosofia do Tio Patinhas

Mas por que o Tio Patinhas? De acordo com a Forbes, ele de fato é o personagem mais rico da ficção, acumulando uma fortuna de 64 bilhões de dólares (dados de 2013), mas o que um pato baixinho de óculos de leitura e cartola pode ter de apelativo para o público do funk? Por que não o Riquinho Rico, que é tão rico a ponto de seu cachorro se chamar Dólar? Ou playboys filantropos que lutam contra o crime, como o Homem de Ferro ou o Batman? Talvez até o extremamente sensual Christian Grey, de Cinquenta Tons de Cinza?

 Em 2018 o produtor de conteúdo João Paulo Vianna produziu um vídeo-ensaio chamado A Filosofia da Saga do Tio Patinhas (ESTÁ ERRADA) em seu canal Tralhas do Jon onde ele refuta a ideia de que o Tio Patinhas seja um exemplo para pessoas que queiram crescer na vida através de trabalho duro e mérito próprio (a meritocracia pregada pelo Liberalismo) já que boa parte do que foi conquistado pelo velho Patinhas (de acordo com o quadrinho A Saga do Tio Patinhas, escrito por Don Rosa) foi a partir da exploração de trabalho de funcionários e a extorsão de ouro e terras de povos indígenas norte-americanos.

 Ou seja, o interesse do funk pela figura do Tio Patinhas não pode ser por vê-lo como um exemplo a ser seguido para ascender socialmente ou como símbolo que justifique ideologias como o Liberalismo (a qual Carl Barks era abertamente adepto) ou a meritocracia, visto que tais ideais favorecem a individualidade, enquanto a periferia (berço e casa do funk) preza pelo coletivo e o caminhar em conjunto.

Reprodução: Disney

 Ainda assim, no mesmo vídeo, João levanta um ponto que pode explicar o porquê do Patinhas ser uma representação mais fiel do que um jovem de periferia quer ser do que outro personagem como, digamos, o Batman. Não haveria porquê se espelhar em um personagem que só pode ser o que é devido ao dinheiro que herdou de seus pais, enquanto o Patinhas é de origem pobre e conquistou tudo o que tem (mesmo que isso siga termos difíceis de se aplicar a realidade). Batman, Homem de Ferro, Riquinho, todos eles vieram de berço de ouro, como eles estariam estampados na bermuda de um funkeiro ou no logo de um baile? 

Um personagem como o Batman reflete exatamente o perfil no qual o público periférico não se veria representado: um herdeiro bilionário interessado em manter o status quo impondo sua autoridade aos pobres inassistidos pelos órgãos públicos. Não é à toa que o Coringa, o maior vilão do Batman, seja também um ícone do funk. Quem sabe nisso a gente não se aprofunda em outro texto?

Mc Kauan, o autodenominado “Coringa do Funk”. Reprodução: Vice.

Essa diferença de aceitação entre os dois personagens (o morcego e o pato) é visível em um trecho de um vídeo do podcast PodPah, um dos maiores mesacasts do Brasil e que tem como apresentadores os influenciadores Igão Underground e Mítico Jovem, ambos de origem periférica e muito próximos da cultura do funk (tanto como consumidores quanto como produtores, Mítico tendo um histórico de DJ e Igão atualmente trabalhando também como MC de trap, mesclando seu som com funk). No vídeo em questão, Igão diz não gostar do Batman porque “ele é um mano que tem dinheiro e faz o que quer”, logo depois de mostrar que fez uma tatuagem do Tio Patinhas na perna.

Não é hipocrisia, é uma diferença de percepção que, consciente ou inconscientemente, diferencia os dois personagens aos olhos de quem não nasceu herdeiro.

A ostentação, o crime e os cria

“Ostentação” é uma palavra que mudou de significado no imaginário popular brasileiro desde o início dos anos 2000. O que antes era, pelo dicionário, o ato de fazer alarde de si mesmo e uma exibição de luxo, poder ou riqueza, hoje é todo um estilo dentro do funk. De acordo com o estudo Funk Ostentação: Entre a Exaltação do Luxo,a Influência do Consumo e a Publicidade, feito por Marina Vieira Leandro e Lívia Maria Turra Basseto, o funk ostentação é um gênero que teve início nas favelas paulistanas e que visava celebrar ou enaltecer bens materiais que uma classe diminuída socialmente almejava ou alcançara. 

 O importante é que, independente de como você defina ostentação, não dá pra negar que essa é uma prática típica do bom e velho Tio Patinhas. Existe algo mais ostentador do que guardar quantidades absurdas de ouro em uma única caixa gigantesca? Ou pular de um trampolim para mergulhar em suas moedas? Ou guardar para sempre a primeira moeda que se conquistou na vida? Não é a toa que os funks que mencionem o personagem sejam sempre os que celebram a abundância de dinheiro ou que mirem em alcançar essa condição. Que sonhem em ficar “tipo Tio Patinhas”.

No documentário Funk Ostentação – O Filme, o MC Boy do Charme, considerado o pai do funk ostentação, defende o estilo e sua influência no público jovem como uma alternativa ao que o funk de apologia ao crime causava nas comunidades pobres.

O funk era muito forte, tá ligado? Levantava o crime demais, ostentava o crime. Isso influenciava a criançada a sobreviver do crime e viver na criminalidade, nas drogas, e acabava com muitas famílias. E hoje o funk mudou pra ostentação. Qual que é a diferença da ostentação, hoje? A criançada se espelha muito nos carros, nas correntes de ouro

Essa mudança de temática do crime para a ostentação também se reflete na mudança dos ícones utilizados no funk. Afinal de contas, o Tio Patinhas não é o único personagem da Disney adotado pela estética da periferia. Há também os Irmãos Metralha.

Reprodução: Disney

Os Irmãos Metralha surgiram nos quadrinhos em 1951, também criados por Carl Barks para o universo do Pato Donald. Sendo representados como uma família de cachorros criminosos cujo interesse eterno é roubar a fortuna do Tio Patinhas. Assim como seu rival, os irmãos são muito utilizados na cultura periférica, de funk e de rap, sendo usados em roupas, acessórios, tatuagens e como mascotes de bailes funk ou até mesmo de clubes de futebol (lembrando que os Irmãos Metralha são amplamente associados a clubes de futebol de apelo popular como o Corinthians). É comum, inclusive, que se veja o Tio Patinhas e os Metralha retratados lado a lado. Não numa posição de parceria, mas de oposição.

A mudança de ótica, que acompanha a transição do funk de apologia ao crime para o funk ostentação, é bem definida: se antes o indivíduo usava os Metralha como uma representação de si, hoje o Tio Patinhas é o personagem que o representa. Enquanto isso, resta aos antagonistas o papel de “perreco”, de “invejosos”, “recalcados”, que almejam o que é seu. Uma narrativa comum em letras de funk ostentação. Essa visão quem passou ao Portal PerifaCon foi o nosso entrevistado Bruno Henrique ou, como ele prefere ser chamado, BH MlkZika. Fã do Tio Patinhas e de funk, o jovem de 19 anos mora em Jandira, na Zona Oeste de São Paulo e diz enxergar a influência que a riqueza do personagem exerce sobre os jovens como algo positivo.

Todo mundo quer ser rico, todo mundo quer se vestir bem, ficar bem, tá ligado? Aí se a gente vê alguém que conseguiu ter o que a gente quer, a gente acredita que consegue também. Tanto no personagem quanto no nosso cotidiano, quando alguém porta um kit, umas correntes, tira uma nota. Um exemplo é o Veigh,o rapper. Ele é da quebrada do lado de onde eu moro, Itapevi. Aí eu vejo ele bombando, estourado e aumenta a minha autoestima. Fico pensando “ele tava aqui do lado e conseguiu, então eu também posso conseguir”.